XXIII
"PECADOS DE DEUS"
Na vida de um homem nasce a Morte,
Primeiro em pensamentos, meditando
Sobre outros que se foram acabando:
O fraco, o pobre, o rico e o mais forte...
E por mais que o proteja a própria sorte
Ele vai vendo os anos desfilando,
Um a um vão-se os meses esgotando...
Já enrugada a pele lhe esconde o porte!
Depois... o condenado vê nascer,
Dentro de si, o medo de viver
À espera, sempre à espera desse dia...
E gritando bem alto diz a Deus:
- Ó criatura infame, o meu adeus
Traduz a tua megalomania!
Gil Saraiva
XXII
"PESCADOR"
Ele que lutou p'la vida em seu batel,
Pescando bacalhau nos mares do Norte,
Nessas águas repletas só de fel,
Cabeça erguida ao mar, possante, forte,
Morreu, como soldado de papel,
Na guerra; o pescador de rude porte...
E em Salvador, Polónia ou Israel
Nasceu repleto o dia para a morte...
E em palavras finais de moribundo
Com desprezo p'la vida que levou,
Como uma despedida deste mundo,
Mesmo antes de morrer ele falou:
- Eu, que por cá venci os elementos,
Morro, p’las mãos dos homens, em tormentos!
Gil Saraiva
XXI
"NEGRA BARCA"
O rio desce a encosta negra, escura,
Negra a noite desce, sobre ele, também...
Negro homem, que por ele abaixo vem,
É barca, nessas águas, insegura...
Oh! Pobre casco, de madeira dura,
Afunda-te nas vagas dum desdém,
Que quem amas, sorrindo, por ti tem...
Afunda-te nas águas da natura...
Leva contigo esta mancha de vida,
A barca negra de uma negra dor,
A barca, que sou eu, na despedida
Mui’ cruelmente negra desse amor...
Perdi a luz, nas trevas sou monarca,
Sem ti nada mais sou que a negra barca...
Gil Saraiva
XX
"VÓS"
Vós ó mulher, amiga ou namorada;
Vós ó vida, na qual existe alguém;
Vós ó beleza, em vós simbolizada;
Vós ó terna menina, meiga mãe;
Vós que sois nada mais que um simples nada;
Vós procurais o quê? Procurais quem,
Por entre a multidão, de madrugada?
Que desejais de mim, ó seres do além?
Vós sois carnes sedentas de desejo...
Vós sois cardos, nos homens, entrançados...
Vós ó arte pintada em azulejo,
Vós ó fonte da vida, dos pecados,
Que mais quereis de mim, neste momento,
Se a vós eu entreguei já meu talento?...
Gil Saraiva
XIX
“ESTRIGAS DO DILÚCULO”
Bruxas, estrigas e outras feiticeiras
Neste dilúculo ocultam mistérios,
Antes que o dia venha em passos sérios,
Desmascarar arcanas carpideiras
Pranteando lamentos nas fogueiras.
Dor, esfinge noturna, sortilégios,
Nascidos em passados antes régios,
No hoje conjuram, nas velhas leiras,
Novos feitiços, macumbas, magias,
Sobre o amor, poder e ambição.
Na bruma me amarraram à traição,
Bem preso entre fobias e agonias,
Virei senhor de mim, entre tormentos…
Estrigas do dilúc’lo dos lamentos…
Gil Saraiva
XVIII
"DIA DOS NAMORADOS, PARA ALGUNS…"
Por ver chegar o dia triste estou…
Sim, porque hoje celebram namorados
Serem um par, o estar apaixonados
Bem dif’rente de como, agora, eu vou…
Celebram o que, em mim, se evaporou,
E há, por todo o lado, encantados
Abraços, beijos, mimos devotados,
Que p’ra longe de mim alguém levou...
Por toda a parte aromas e fragrâncias
Rapidamente espalham os odores
De pecados de amor, sem arrogâncias,
Que em mim parecem tão devastadores...
Dia dos Namorados, quem me dera
Voltar a celebrá-lo… é longa a espera…
Gil Saraiva
XVII
“ESPELHO DE VENEZA”
Na prata refletora, gasta, usada,
Um grito monstruoso, sem sentido,
Aparece espalhado, desmedido,
Ao refletir minha alma estilhaçada...
Meu resto de ego a braços com o nada...
Meu gasto corpo verme apodrecido!...
No espelho de Veneza, já partido,
A clepsidra da vida está parada,
Presa, no velho vidro cristalino,
Pelas correntes tétricas da dor...
Presa nas profundezas de um amor
Traído... para sempre... sem destino...
Já nem o espelho cumpre o seu mister.
Traído por sorrisos de mulher...
Gil Saraiva
XVI
“DOLOROSA DOR”
Dorida dor no coração talhada;
Ah! Lenta e melancólica tortura,
Vem levemente... calma... com ternura...
Esculpir em mim a chaga ensanguentada...
Criando, como se não fosse nada,
Um pessimismo... mágoa, dor, loucura,
Um desejo profundo de rotura,
Com uma vida há muito já passada...
Ah, dolorosa dor de mim saída,
Piranha só, de uma ilha tropical,
Borrão numa paisagem bem garrida,
Ruína de um castelo antes feudal,
És tu quem mancha toda a minha vida,
Ruína do meu próprio pedestal!...
Gil Saraiva
XV
"IMPORTA"
Que importa ter o fruto mais perfeito
Se algures não encontrar uma alma irmã?
Sem ninguém para mim o amanhã
Apenas ao futuro dirá respeito...
Para que serve ter dentro do peito
Guardado o Sol que nasce p'la manhã,
Manter o corpo vivo em mente sã
E até nem possuir qualquer defeito?
De que me vale o ser sem ter guarida?
Sou coração em chaga desumana
Procurando ansioso, mente insana,
Alguém por quem clamar, chamar querida!
Só me importa existir se for lembrado,
Viver não é viver sem ser amado!
Gil Saraiva
XIV
"FUZETA: BRANCA NOIVA DO MAR"
Voam aves marinhas nesta praia
E as ondas se espreguiçam na areia;
Num cato brilha uma sedosa teia;
Passa uma jovem, rindo, em minissaia,
No cais um pescador mostra uma raia
Perto de uma criança que esperneia
Quebrando ali a calma, na aldeia,
Sem que mais nada, assim, se sobressaia…
No ar cheira ao marisco das tasquinhas,
De outras vem outro odor: sardinha assada,
E dos beirais espreitam andorinhas…
Branca noiva do mar, terra encantada,
A ti os pescadores, na despedida,
Pedem pescado, rezam pela vida...
Gil Saraiva