IX
“OS FILHOS DA SOLIDÃO”
(balada de um tempo que passa)
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Desvio o olhar para não ver nada…
Em Faro, no Manuel Bivar,
Eu fecho os olhos para não olhar...
Caras rugosas, com idade de avô,
No Jardim, sentadas, na Doca ou no Lago,
Formas sombrias que o tempo parou…
Bocas que apenas provaram o vago…
Rostos que ninguém mais ali focou...
Olhando o vazio...
Silêncios de arrepio...
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Desvio o olhar para não ver nada…
Em Faro, no Manuel Bivar,
Eu fecho os olhos para não olhar...
Caras dos filhos da Solidão,
Avôs e avós,
De tantos como nós,
Rostos reformados,
Sem compreensão...
Sem compreensão
Seja inverno ou Verão…
E vozes, berros e gritos calados
Nos olhos perdidos,
Pelos filhos esquecidos...
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Desvio o olhar para não ver nada…
Em Faro, no Manuel Bivar,
Eu fecho os olhos para não olhar...
Na calçada as migalhas de pão
Para os pombos ter de alimentar...
Mas para os filhos da Solidão
Não vejo por perto
A esperança pairar...
Filhos que agora são avôs, avós,
De gente que hoje já os esqueceram,
Perdendo os olhares, os laços, os nós,
Daqueles para quem eles mais viveram…
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Desvio o olhar para não ver nada…
Em Faro, no Manuel Bivar,
Eu fecho os olhos para não olhar...
E passam os dias,
Os meses, os anos,
E mudam os rostos desta solidão...
Novos enganos,
Outra geração,
Mas a forma de olhar não vai mudar,
Não...
As mesmas rugas parecem ficar
Em outros olhos pregados no chão...
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Desvio o olhar para não ver nada…
Em Faro, no Manuel Bivar,
Eu fecho os olhos para não olhar...
Mas se eu vir os filhos da solidão,
Escuto o cantar da brisa cansada
Cantando a balada do tempo que passa,
Escuto de inverno, primavera, verão…
Escuto o outono no Jardim da Parada,
Escuto a balada perdendo essa raça,
E vejo, no Jardim Manuel Bivar,
A doca de lágrimas sempre a brilhar…
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Desvio o olhar para não ver nada…
Em Faro, no Manuel Bivar,
Eu fecho os olhos para não olhar...
Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,
Em Faro, no Manuel Bivar,
Desvio o olhar para não ver nada…
Eu fecho os olhos para não olhar...
Desvio o olhar para não ver nada…
Eu fecho os olhos para não olhar...
Gil Saraiva
Nota: Letra para um Trovador Popular.
VIII
"ZÉ NINGUÉM"
Ele é mesmo
Um Zé Ninguém,
Ninguém sabe
De onde vem,
Como pode então
Um dia
Ele ser alguém?
Ele não tem
Opinião,
Nem passado, nem futuro,
Tem na mão
Um presente sem seguro...
Zé Ninguém
És tu e eu,
Outro alguém
Que já viveu...
Zé Ninguém,
Quantos assim o mundo tem?
Zé Ninguém
Não topa nada,
Não entende uma charada,
Mas serás tu mesmo cego
Zé Ninguém?
Zé Ninguém
Existes,
És ninguém,
Persistes,
És espantoso
Zé Ninguém
Nunca desistes...
Ele não tem
Opinião,
Nem passado, nem futuro,
Tem na mão
Um presente sem seguro...
Zé Ninguém
És tu e eu,
Outro alguém
Que já viveu...
Zé Ninguém,
Quantos assim o mundo tem?
Ele é mesmo
Um Zé Ninguém,
Ninguém sabe
De onde vem,
Como pode então
Um dia
Ele ser alguém?
Como pode então
Um dia
Ele ser alguém?
Como pode então
Um dia
Ele ser alguém?
Gil Saraiva
Nota: 1) Letra para a Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80).
VII
"QUANDO NASCE O SOL"
(Balada da Esperança)
Quando um barco passa,
Ondas de horizonte...
O mar ameaça,
Polui... mastodonte...
Comboio, fumaça,
Carris sem destino...
Nova ameaça,
Novo desatino...
Quando nasce o Sol
Não queremos engodos...
Quando nasce o Sol
Nasce para todos...
Chamem as crianças
E ensinem p'ra elas:
Tem de haver mudanças,
Montem sentinelas!
(crianças)
Queremos ambiente,
A pura maçã,
Queremos novamente
Uma Terra sã...
Nós somos crianças
Queremos mundo novo...
Tem de haver mudanças
Para o bem do Povo...
Quando nasce o Sol
Não queremos engodos...
Quando nasce o Sol
Nasce para todos...
.
(banda)
Não queremos sulfatos,
Ácidos, fenol,
Fábricas sem tratos,
Guerras de paiol;
Não queremos sujeiras,
Borras de café,
Nem queremos lixeiras,
Nem negra maré...
Quando nasce o Sol
Não queremos engodos...
Quando nasce o Sol
Nasce para todos...
Chamem as crianças
E ensinem pra elas:
Tem de haver mudanças,
Montem sentinelas!
(crianças)
Queremos ambiente,
A pura maçã,
Queremos novamente
Uma Terra sã...
Nós somos crianças
Queremos mundo novo...
Tem de haver mudanças
Para o bem do Povo...
Quando nasce o Sol
Não queremos engodos...
Quando nasce o Sol
Nasce para todos!
Nasce para todos...
Gil Saraiva
Notas: 1) Letra para uma balada de esperança.
2) Letra para a Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80).
VI
"NINGUÉM OU NADA"
(Fado do Amor Sentido)
Trago guardado na memória
Uma simples negra caixa,
Um registo, a minha história,
Um passear pela Baixa...
Um sorriso, um olhar,
E coisas que já mudaram,
Um passado por passar,
Também trago as que ficaram...
Mas de tudo o que passou,
Do que eu vi, do que eu vivi,
Ninguém ou nada igualou
O que ‘inda hoj' sinto por ti...
Lembro os amores do passado,
Os amigos, os momentos,
Quem está vivo ou acabado,
As ruas, os monumentos...
Lembro as mudanças já feitas
Nas fachadas, nas cidades,
Lembro ações imperfeitas,
Revoluções, liberdades...
Mas de tudo o que passou,
Do que eu vi, do que eu vivi,
Ninguém ou nada igualou
O que inda hoje sinto por ti...
E se há quem eu nunca esqueça,
Locais agora só meus,
Também há quem não mereça
Sequer o banco dos réus...
Tudo e todos amo enfim,
Pois tudo foi o que sou:
Histórias, um resto de mim,
Que cresceu, que se alterou...
Mas de tudo o que passou,
Do que eu vi, do que eu vivi,
Ninguém ou nada igualou
O que inda hoje sinto por ti...
Ninguém ou nada igualou
O que inda hoje sinto por ti...
Gil Saraiva
Nota: Letra de Fado escrita para o meu amigo fadista Zé de Angola.
V
"UNÁ 'STRÂNHÁ FÓRMÁ DI ÁMAR..."
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
E pra um ele há sempre uma ela,
E esse sorriso é aguarela...
Genial traço
Que ao pintar
Traduz
«Essá 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
Traduz
«Essá 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
No esboço pintado na tela,
Na contraluz de uma janela,
Iluminada ao luar...
Iluminada ao luar...
Hum... hum... há
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
Hum... hum... mais
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
Palavras
Que ninguém entende,
Olhares
Quem os compreende?
Carinhos
Só de imaginar...
Só de imaginar...
Hum... hum... há
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
Hum... hum... vai...
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
«Uná 'strânhá fórmá di ámar...»
Gil Saraiva
Notas: 1) Canção ao género de Ramazzotti, uma balada para voz rouca.
2) Letra, com título e refrão, brincando com a pronúncia italiana.
3) Letra para a Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80).
IV
"CARA DE PAU"
Um pau
Muito habilidoso
Se levanta com jeitinho,
E ataca poderoso,
Com força...
Devagarinho...
Ajudado pela mão,
Se roçando pela mata,
Sem sentir a confusão
Do atrito que o maltrata...
Um pau
Muito habilidoso
Que sabe ser carinhoso;
Forte e firme,
Quando engata...
E o pequeno buraco
Ao saber
Que se avizinha
A mestria desse taco:
Ou já sabe
Ou adivinha
O que o espera em seguida,
Ao que tem
Que dar guarida...
E, num ato corajoso,
Se entrega
A total repouso...
O momento
É derradeiro:
Vai esse pau,
Finalmente,
Atacar firme, certeiro,
Com precisão evidente...
Que grande cara de pau,
Esse pau que tudo arrisca,
Sem fazer
Cara de mau,
Guloso do que petisca…
E o buraco,
Entre a relva,
Fica à espera,
Sem ruído,
De ouvir, rasgando a selva,
Esse pau evoluído...
Rolando devagar,
Já sem pressas de chegar,
Aí vem
Sem dizer nada,
A bola por ele tacada,
Que por fim
Se faz entrar...
Ah!
Jogada tão perfeita,
Nunca no golfe
Foi feita!
Vamos todos aclamar!
Gil Saraiva
III
"ORAÇÃO DOS PARTIDOS"
CDS - Pai nosso ficai no Céu
PPM - Venha a nós o Vosso Reino
PSD - Seja feita a nossa vontade
CHEGA - Para mim na Terra que se dane o Céu
PCP - O pão Vosso de cada dia nos dai hoje
BE - Perdoai-nos as nossas ofensas
IL- Assim como não perdoamos a quem nos tem ofendido
PS - Não nos deixeis cair em tentação
PAN - E dai-nos o animal
Verdes - Ámen!
Joacine Catar Moreira: “- Então e eu?”
Gil Saraiva
Nota: Adaptação do Pai Nosso da Igreja (CAR).
II
"QUEM É ELA?"
Senhora do seu nariz...
Rainha do mundo inteiro...
Dos governos a raiz,
Pelos povos paradeiro...
Cor de castanha dourada,
Macia, suave ao tato,
No formato variada,
Moldável, foto, retrato,
Imagem da criação!...
Serena, fruto fecundo,
Espalhada pelo mundo,
Em qualquer parte, no chão
Ou num parque, pela rua,
Tão completamente nua
Sem tabus ou sem receio
Descansando no passeio!
Amiga de toda a gente...
Ecologia em pessoa...
Ela é tão simplesmente?
"- Merda pura e da boa!"
Gil Saraiva
Nota: O poema deve ler-se de seguida exceto o último verso, esperar as respostas de quem ouve e depois ser concluído. Seguidamente, depois de todos se rirem, deve repetir-se o poema seguido até ao fim, para que se absorva totalmente o encaixe da resposta final no poema.
I
“TRIBUTO DE AGUARELA”
(a Toquinho)
Se um diário eu puder
Transformar num caramelo
E assim que quiser
Desfazê-lo com um cutelo…
Para escrever imaginação
Ou um poema à chuva
Eu preciso saber
O que sente, espremida, uma uva…
Se há alguém que minta
Para o meu coração eu sinto o fel,
A dor, de sexta a quinta,
Uma imensa derrota escrita em papel,
Desprezando
A minha harmonia deste meu paul,
Dessa estrela, que brilhando,
Desta minha alma esconde o azul…
Vivo para ela
Porque me entregando
Sinto na minha vida o Norte e o Sul…
E aos sonhos vou pedindo
Desejos de vida e de oxalá
Onde agora tudo é lindo
Porque a sinto eu agora cá…
Quero acreditar nesses lábios rindo,
Olhar sorrindo,
Porque de ti mulher
Não vem coisa má…
Posso ser quem eu quiser,
Com empenho te dou a minha vida.
Sou teu homem, teu, mulher…
Sou um lar, nunca a saída,
Ser teu espaço no espaço
E chamá-lo de nosso mundo…
Ser a seta, ser o traço,
Que na alma chega ao fundo…
Se um sonho vira mina
De água, em nascente de futuro,
Porque a sonhar a mente
Ultrapassa vala, parede, muro ou mar…
E sem muro a cidade
Continua a aumentar
Procura a felicidade
Que quer vir a alcançar…
Meu amor avança
Como ela, querida,
Tu és minha vida
Só eu te quero amar…
És minha rocha, meu jade,
Joia minha, no alto a brilhar…
O princípio da saudade
Que mais não pode aumentar.
Menina linda e bela, nessa janela,
Uma aguarela
À beira jardim.
Ela me amará
Só porque me ama a mim…
E quero eu ser um caramelo
Que ela degustará,
Ser seu rei ou castelo
Feito de amor e de orixá
E que ela amará
Por instantes, um segundo
Tão imenso como o mundo
E que ela adorará…
Gil Saraiva
Nota: Letra para a Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80).
Introdução
Os “Desvarios em Sol-Posto” fecham a trilogia dos poemas marginais. Sendo que marginais aqui, no presente contexto, são todos aqueles versos que não se enquadram diretamente nos normais parâmetros de qualidade, de um poeta que se queira afirmar como tal, no meio cultural em que se encontra inserido. São coisas para ficar na gaveta do esquecimento, lembranças juvenis de tempos idos ou meros desabafos que nunca chegaram a merecer, por parte de quem os escreve, um verdadeiro apelido de poesia.
Tendo a presente trilogia sido iniciada com o livro “Divagações Quase Líricas”, a que se seguiu um outro intitulado “Devaneios de Estros Imémores”, é com estes “Desvarios em Sol-Posto” que esta pequena saga divergente se concretiza por fim. Sendo que a grande maioria dos textos foram criados como letras para músicas de bandas, trovadores, baladeiros ou fadistas, o seu conteúdo gira em torno das temáticas escolhidas por aqueles que as apresentavam em palco.
Para quem se deu ao trabalho de seguir este livro, ou até a acompanhar toda a trilogia, é importante o conhecimento dos porquês que à mesma deram origem. De todos eles apenas as letras para a banda “Iris” vingaram.
Gil Saraiva
Observação: Os poemas deste livro foram criados entre 1968 e 2020.