V
“EXISTES?”
Quem procura sempre encontra
Diz um ditado antigo,
Mas a realidade tem outra face.
No imenso oceano das relações humanas
A procura da alma gémea
Nem sempre dá frutos,
Raramente germina,
E só de vez em quando tem solução.
Nada disso!
Afirmam os teóricos do "corin tellado",
Explanando um universo de uniões e casamentos
Que despontam, a cada dia, nesta aldeia global
A que chamamos mundo.
Porém, ó sim, porém, quantos deles derivam,
Nascem e florescem por amor?
A realidade fica mais despida de casos
Sob a ampliação realística do sentir.
A densa floresta dos altares
Transmuta-se, num ápice, em minúsculos oásis,
Tímidos, discretos e invulgares.
Contudo apelativos, invejados e bem vivos.
Procurar uma agulha num palheiro
Parece ilustrar melhor o quotidiano…
A busca gera facilmente o desalento,
E, escondida na capa colorida de um rosto alegre,
Encontramos, quantas vezes, a mágoa da solidão.
A personalidade esculpida,
Pelas duras ferramentas do existir,
Arrasta consigo condicionalismos difíceis de extinguir.
Avidamente procuramos sucedâneos;
Seja a novela da TV, seja o recurso à Internet,
No "Facebook", no "Instagram", nos "sites" sociais,
Mas o vazio continua ali,
Interminável, inflexível, cru.
O Terceiro Milénio parece ajudar…
A comunicação é mais fluída, mais fácil, mais ativa,
Mas maioritariamente estéril.
Entretém, mas não resolve.
Ao procurarmos paz
Serenamos o ser,
Vamos dançar, beber um copo, jantar com a família
Ou ver o mar.
Colecionamos momentos "Zen" ou de alegria,
Tentando preencher o vazio,
Afastando as nuvens do quotidiano,
Prevenindo o terramoto a que chamamos depressão.
Trabalhar ajuda; ter filhos, família, amigos ou passatempos
Acalma desesperos, desperta sentimentos de carinho,
Solidariedade, autoestima, ocupando a mente,
Distraindo o corpo, alimentando o ego e o ser,
Mas não produz remédio que cure a situação.
Regularmente voltamos ao palheiro
Na procura quase insana dessa agulha
Que nos justifique o existir.
Aqui e ali, parece brilhar algo, mas, ao perto,
Verificamos que era apenas palha banhada pelo Sol.
E a dúvida ganha contornos de pergunta,
De vontade louca de saber,
De grito galáctico na noite universal:
Existes?
Meu amor, será que existes?
Gil Saraiva
IV
"A NOITE"
Se eu fosse um sonho,
Meu amor,
Esta noite tu eras minha!
Esperava na bruma
Pelo teu adormecer...
Sem pressas, sem barulho,
Deixando o silêncio
Se instalar devagarinho.
Poderia espreitar,
Uma vez ou outra,
Aguardando pelo ritmo compassado
Da tua respiração,
Até quando, por fim,
Morfeu te recebesse nos seus domínios.
Saído da bruma, por entre as sombras,
Aproveitando o Quarto Crescente,
Que se iniciou no fim da tarde,
Finalmente,
Eu entraria no limbo do teu cérebro
Para poder passar a ser
Um sonho teu.
E tu, incauta e desprevenida,
Nem darias por mim.
Tomarias o sonho como teu
E nada mais.
Naturalmente, simplesmente,
Apenas mais um sonho.
Regressei ao banho,
Aquele que tomaste hoje,
E introduzi-me nele...
Nesse mundo da imaginação,
Que quase parece acontecer,
Porque sonhavas…
Tu sentiste as minhas mãos
Fazendo deslizar o gel
Pelo teu corpo,
Percorrendo a derme
Como quem corre a maratona,
Sem pressas, sem movimentos bruscos,
Como se fosse comum
Eu explorar-te assim avidamente.
Agora o teu sonho era meu,
Não tinhas como o controlar,
As minhas mãos invadiram-te a boca,
Os seios, as nádegas e o sexo,
O meu corpo molhado esfregou-se pelo teu…
Na loucura dos momentos seguintes
Perdeste a conta de quantas vezes foste possuída,
Nas entradas que entregaste vibrando
Perante o meu avanço hirto e decidido.
A noite pareceu durar uma vida e um momento…
Acordaste tarde, relaxada, suada, húmida e a sorrir,
Já a aurora despontava no horizonte,
Já eu regressara à bruma de onde viera
Silenciosamente…
Um pensamento invadiu-te a mente:
“Hoje o dia só me pode correr bem.”
O Quarto Crescente da Lua
Trouxe-te uma noite
Para mais tarde recordares com um sorriso…
A noite tem destas coisas…
íntimas, secretas, nossas,
Impossíveis realizados pelo âmago,
Desejados pelo querer,
Concretizados pelo sonho,
Traduzidos pela escuridão!
Gil Saraiva
III
"REFÚGIO"
Tenho um refúgio, só meu, de mais ninguém,
Para onde eu vou, quando me sinto triste,
Quando me sinto em baixo,
Quando eu não me sinto eu…
Sim! Aqui, precisamente aqui,
Nestes lugares onde escrevo,
Onde descrevo os recantos da minha mente.
Aqui, onde não existe tempo,
Entre a caneta e o papel,
Entre o teclado e o monitor,
Entre mim e o que escrevo.
Aqui, onde o tempo não conta
Enquanto estou a sós com a minha alma,
Aqui onde e quando, como que por milagre,
Sou em mim o universo imenso.
Penso em ti… No que tu és, nas coisas que fazes,
No que te constitui, naquilo que representas para mim,
E a minha memória recorda-me
Os dias em que me chamavas amor,
Em que gritavas que me amavas,
Em que dizias ser parte de mim.
Mas, ah! Não! Não tenhas pena da situação,
De nós, nem do passado,
Pois tu sabes que não sou de ter pena
E que deploro os coitadinhos.
Não! Não terás de ficar triste amanhã
Pois eu sou um ser feliz.
Apenas o hoje conta.
O já e o agora.
Apenas eles importam realmente.
Neste refúgio da minha alma estou morto de saudades,
Já saíste de casa há tanto tempo, meu amor, há mais de cinco minutos…
Afinal, diz-me querida… quanto tempo demoras na cabeleireira?
Gil Saraiva
II
"OUTRO ALGUÉM"
Cristalina
Como um glaciar,
Derretendo
Sobre um vulcão de lava,
Assim ela é!
Queimando gelada
Ou ardente
O coração de quem sente...
Mulher,
Sempre mulher!
Fêmea, matriarca,
Submissa ou dona
Do seu nariz…
Pura na noite sem fim,
Suave no olhar,
Como a vertente da montanha
Que em avalanche desliza
Pra me invadir a alma,
Poderosa, incrível, única!
Maria da Fonte,
Padeira de Aljubarrota,
Joana d’Arc,
Amália, Marisa, Dulce Pontes,
Teresa Salgueiro,
Barbie,
Vénus, Héstia, Juno,
Diana ou Artemisa.
Bruxa, fada,
Feiticeira, Anjo,
Santa Maria
Ou Madalena…
Alguém que nos atrai
Com sua luz,
Doce e leve como suave pena
Armadilha fatal
Que nos seduz.
Rainha, escrava,
Águia, misteriosa,
Cleópatra, concubina,
Mítica cigana,
Que bem conhece a sua própria sina.
O ser perfeito,
Na imperfeição dos seres,
A miragem
Que se consegue ver
Em todo o lado.
Virtude, dor, amor
E o pecado…
Assim tu és,
Meu bem!
Agora e sempre,
Cristalina,
Vulcânica...
E de outro alguém!
Gil Saraiva
I
"AS VOZES"
No austero silêncio da net
A comunicação é infinita,
De todos para todos,
Tal como o infinito
Que nada mais é
Que tudo para tudo...
Por uma rede
Universalmente livre,
Que não se calem
Nunca
As vozes do futuro:
As nossas vozes!
Nascemos selvagens
E livres para a internet...
Sem regras, sem normas,
Sem segurança,
Com garra, com ganas de saber...
Agora,
Na ânsia do lucro,
Os vampiros do capital
Procuram o comando,
Do que nasceu nosso,
Porque foi feito por nós!...
Por uma rede
Universalmente livre,
Que não se calem
Nunca
As vozes do futuro:
As nossas vozes!
Gil Saraiva
Dedicatória
Este livro é dedicado às paixões que pululam pela internet, no caso português desde 1994. Algumas delas com resultados inesperados de encontro de almas gémeas, que ficariam para sempre perdidas, não fosse esse, ainda quase recente, meio de comunicação. A world wide web cedo se tornou a world wild web, em que tão facilmente conseguimos encontrar o melhor de todos e cada um de nós, como, da mesma maneira, nos deparamos com o lado sombrio e desumano a que alguns dos nossos semelhantes parecem aderir com a mesma simplicidade. Como na vida, temos de tudo, bondade, solidariedade, fraternidade, liberdade e igualdade, como mentira, engano, ódio, rancor, e outras coisas que nem vale a pena descrever. Bem-vindos.
Nota: Poemas criados entre 1995 e 2020
XIII
"DORME EM PAZ"
Lembro...
Lembro como se fosse ontem...
Lembras-te?
Ainda te recordas?
Foi uma reunião vivida.
Uma união louca...
O focinho do teu cão ficou vermelho de pudor
E ao canário demorou a voltar-lhe o pio.
Só os lençóis do nosso leito
Acharam natural o que foi feito.
E tu rias,
Ó como tu rias.
Pela janela escutávamos o riacho
E as mariposas batiam as asas
Para lá do varandim
Acenando-nos, ao vento, as boas vindas.
O meu pai era contra...
Embora, bem no fim,
Se tenha rendido ao nosso amor
E concordado com a nossa felicidade
Sem mais entraves,
Sem mais problemas.
Nunca deixei que tivesses remorsos.
Nunca permiti sequer um arrependimento.
Nunca te neguei tudo o que sou.
Nunca te tirei o que tu eras.
Nunca te enganei num pensamento.
Nunca o teu olhar me perturbou.
Amei-te sempre,
Dia-a-dia, hora e momento!
Dorme em paz, agora, ó meu amor...
Gil Saraiva
XII
“DIREITO À VIDA”
Dizem que temos nós
Direito à vida.
Dizem
Que vem na lei,
Que tem de ser.
Dizem
Que ninguém pode
Dela ser privado,
Salvo se crime houver
E, sem saída,
Se age
Por mais meios
Não haver…
Uns dizem
Que é direito assegurado,
Que assim
Se constrói democracia…
Outros dizem
Que tirá-la
É pecado,
Sentença capital
Da agonia,
Condenando,
Até ao fogo eterno,
As almas pecadoras,
Ao Inferno.
Mas o que dizer de quem
Aplica um memorando,
Que pelo eleito poder
Se torna lei,
Levando o povo ao suicídio
Ou à pobreza,
Por não ter
Como cumprir
Um tal comando
Imposto por Governo,
Armado em Rei,
Num confisco
Que torna o Povo em presa...?
Dizer que são culpados!
Porque não?
Dizer
E condená-los a prisão!
Homicídio involuntário
De gente sem saída,
Gente
Que se mata,
Só por desespero,
Gente fraca,
Sem sorte,
Empobrecida,
Que não sabe de roubo
Ou contrabando,
Que grita dor
E fome pelo exagero
Do saque
Em favor do memorando….
Dizem
Que temos nós direito à vida.
Dizem
Que vem na lei,
Que tem de ser.
Quem julga os assassinos
De tanta gente?
Quem julga um Estado
Destes tão demente?
Mensagem que me conforte
Só da mão de um cauteleiro,
Que vende fortuna e sorte
A quem a comprar,
Certeiro.
Não culpes o mensageiro,
Que mensagem não escreveu,
Se não gostas,
Vê primeiro
Quem foi…
Quem a remeteu.
Se vier numa garrafa
Uma mensagem assim,
Cheira a mofo e não se safa,
De já não falar de mim,
Nem daqueles que pereceram
Pelo confisco ou pelo suicídio
Em desespero…
Gil Saraiva
Nota: Poemas dos tempos idos da Troika em Portugal.
XI
“RESISTE"
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma idêntica paixão!
Se paixão... paixão houver,
Nessa alma que te prendeu,
Não faças o que ele quiser
Sem saberes se ele é só teu!
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma tão grande paixão!
Sem saberes se ele é só teu,
Se não tem outra mulher...
Sem saberes se compreendeu
Quem tu és e o que ele quer!
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma idêntica paixão!
Quem tu és, quem tu serás
E o futuro em que consiste?
Sem saberes se ouvirás:
"Sorria nunca ande triste!”
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma tão grande paixão!
Sorria nunca ande triste
Pelos caminhos da vida,
Que a vida que em nós existe
Não tem volta... só tem ida!
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma idêntica paixão!
Não tem volta a despedida,
Ó mulher, mulher resiste
Que a chama da tua vida
Tens de ver se nele existe!
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma tão grande paixão!
Resiste! Mulher resiste
À chama do coração,
Vê primeiro se nele existe
Uma idêntica paixão!
Gil Saraiva
Nota: 1) Letra para a Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80).
2) Letra para canção tipicamente alentejana.
X
" MÔÇA"
Será que os que «ôvem» este «disque»
Escutam a minha história
Sobre a moça dos «mê» sonhos?
A minha glória...
Ela era tudo para mim,
A minha vida...
A minha saudade, o meu chegar,
A minha querida...
Ah... «môça»... «môça»... «môça»...
Já pôs o pé na poça...
Tantas vezes pensei eu
«Deixá-la da mão»,
Mas ela ficava
Num «prante» então...
«Ela a modos que» me prometia
O mundo,
E eu parecia «crê-la»
Num segundo,
Mas agora porquê...?
Eu «nã» sei não...
‘Tá «tude» uma grande confusão...
Ah... «môça»... «môça»... «môça»...
Já pôs o pé na poça...
Ela tem um estado
Que te deixa almareado...
‘Tás tu «débe» a ver como é?
Tu dos «carretes» ficas passadinho...
Só a presença dela põe-te em pé,
P'ra passar depois é um «caldinho»...
Ah... «môça»... «môça»... «môça»...
Já pôs o pé na poça...
Agora que ela «dê-me» p’ra trás,
Já nem sei bem do que serei capaz...
Se fosse um pescador
Ia tentar pescá-la,
Mas a certeza «nã» teria
De apanhá-la...
É como no sueste
Ir à conquilha
Ou ir ao gambozino
Com uma pilha...
Ah... «môça»... «môça»... «môça»...
Já pôs o pé na poça...
Ah... moça... moça... moça...
Já pôs o pé na poça...
Gil Saraiva
Nota: 1) Letra para a Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80).
2) Algumas das expressões usadas são tipicamente do sotavento algarvio.