XIX
"O JOVEM QUE JÁ NÃO SOU”
Um jovem…
Um jovem escritor chamado eu.
- E escreve de pequenino?
Pergunta Baco a Morfeu.
Dirão os deuses do Olimpo,
Que escrever é arte nobre
E isso de eu ser escritor tem muito que se lhe diga,
E os doutos homens das letras,
Alimentam tal intriga,
Com desprezo pelo pequeno, que, entretanto, envelheceu,
Que pouco sabe da arte,
Que pouco ou nada aprendeu,
Que tenta escrever umas tretas,
Sem ligar aos doutos homens das letras.
Porque o jovem não se acanha, a idade é-lhe estranha,
O que vale é evidente, que a alma não tem idade,
Mesmo aos cem… é mocidade.
Escreve o que sente e não sente,
Só à caneta é fiel, que esse ser é… tinta ardente,
Numa folha, no papel, no pensamento da vida,
Nesta quimera esquecida, chamada civilização!
Não há só filosofia, crença ou religião,
Há também a fantasia, do jovem, velho, criança,
Uma semente de azia, num mundo sempre em mudança.
Caneta e tinta, papel.
Resignado, suicida,
O jovem velho bem sente que… vai-se acabando a vida…
Escreve uma folha, outra folha,
Poeta ardente, ciente, com tinta, compreensão.
O poeta escreve o fel na folha ardente da vida,
Resignado, suicida, caneta, tinta, papel,
Grava o que sente na ferida!
Não sente os tempos vividos,
Sente o eco dos sentidos!
Gil Saraiva
XVIII
"O MURO”
O muro de Berlim…
O muro de Berlim foi ontem,
Mesmo depois dos anos já passados!
Foi ontem ainda
Que virou pó de perlimpimpim,
O muro de Berlim.
O muro de Berlim…
O Muro da vergonha,
Da tristeza fria
Daqueles para quem o mundo não sonha!
Filho da velha muralha da China,
Progenitor do novo muro americano,
Que a América
Não quer mais mexicano.
O muro de Berlim…
O muro em que juro,
Não apenas eu, mas um alguém que alguém já foi,
Que naquelas pedras não poisa cegonha,
Mas morre outra mãe,
Nos muros que ostentam a peçonha,
De se erguer, na Europa, a quem tem
A esperança emigrante de poder ir mais além.
O muro de Berlim…
Vi na televisão que já ruiu,
Ruiu por fim…
Betão armado de palavras
Há muito sem significado.
O muro caiu,
Faz tempo agora,
Só porque em certa hora,
O vermelho
Perdeu a sua cor
Que por sinal não falava de amor!
Gil Saraiva
XVII
"INVERNO”
Inverno…
Inverno triste e sombrio.
Frio!
Vento!
Chuva!
Não posso suportar mais.
Só, gelado,
Confinado,
Entre quatro paredes metido,
A sete chaves fechado.
Não pode fazer sentido
Este isolamento infindo
Que gela como a estação,
Não oiço crianças rindo,
Não tenho um abraço irmão,
Que inverno se acabe indo,
Que logo regresse o verão.
O inverno, este inverno,
Mais me parece um inferno,
Visto roupa, esfrego o pelo,
Mas este inferno de gelo
Queima-me o coração.
“- Já chega!” - grito eu então.
O inverno é como o inferno,
É como espremer uma uva,
É buraco em vez de luva,
É um nó sem desatilho,
É dor que doi por demais
É como ser filho
Sem pais!
Gil Saraiva
XVI
"CÃO DE CAÇA”
É manhã. Acordo! Olho à minha volta…
Acordo e logo algo me revolta!
Sinto a tua falta,
Não sinto o teu carinho,
A manhã vai alta,
Sigo o teu caminho!
Sigo atrás de ti como um cão de caça
E não me esqueci que um cão não maça,
Mas que ama seu dono com muito respeito.
Nunca te abandono e, quando me deito,
Para mim o sono já não tem efeito.
Este meu amor, que sinto por ti,
É tão grande e forte
Que para além do sono até venço a morte!
Apesar de tudo, pouco eu te vejo,
Mas eu sei, contudo, que hoje te desejo,
Que ontem te quis,
Que amanhã te adoro.
O meu ser hoje diz:
Amor, eu te imploro que amanhã me ames,
Que hoje me adores,
Que comigo andes, que comigo chores,
Não quero sentir mais a tua falta,
Sentirei carinho e a Lua vai alta,
Dá luz ao caminho.
Pertinho, ao teu lado,
Porque amar não maça,
Estou encantado,
Por ser cão de caça que caçou do dono
Todo o seu amor.
Serei cão de caça?
Não! Sou caçador!
Gil Saraiva
XV
"NINGUÈM O QUIS”
Morrer
No mais profundo anonimato,
Como a abelha,
A mosca
Ou o moscardo.
Morrer
Com o nome de bastardo
Gravado a ferros
Em mim e só em mim,
Já tatuado!
Eu que bastardo não sou,
Mas o que importa,
Se o ferro o gravou,
Fechando a porta.
Eu vou morrer no eco dos sentidos,
Num abraço,
De garganta sedenta
Por bagaço,
Por uma vida que me mata
A cada passo.
Mas antes de morrer,
Que mais, então?
Não sei para onde vou
Ou o que fiz.
Durante toda a vida, este meu ser,
Nunca soube servir ou ser feliz,
Nem comover,
Talvez,
Também,
Porque ninguém o quis.
Gil Saraiva
XIV
"UM FOGO”
Sinto frio,
À noite,
No meu quarto.
Vejo-me perdido na confusão da vida.
Olho a tristeza,
Fico triste,
Parto.
Parto à procura de ti,
Que és o rastilho,
Que me acende o fogo, que procuro,
Para que a minha alma se incendeie,
Para que na vida haja futuro,
Para que o meu coração possa sentir,
Amar, viver e ser feliz
Como sempre desejei e sempre quis.
Parto!
Parto à procura desse fogo,
Dessa chama que alcança a alma irmã.
Um fogo que não queima,
Que não mata,
Um fogo que não é desolador,
Um fogo que apaga a própria dor.
Parto em busca de um amor
Que não tem fim,
Nem passado,
Nem futuro,
Nem presente.
Ele que vem de um fogo,
Assim, somente,
Que ardendo em mim,
Jamais me queima.
Um fogo onde aqueço coração e mente,
Um fogo que nasce, vive
E dura eternamente!
Gil Saraiva
XIII
"PORQUE EU VENTRE NÃO TENHO”
Meus versos, meu amor,
São como um ventre que te anseia,
Mas é bizarro porque não tenho ventre…
Já é difícil suportar o inverno,
Que meus ossos, quer gelar,
Mas bem pior é sentir a tua ausência,
É um morrer,
É um saber que vou sofrer sem ti…
Afinal, é difícil dizer não à solidão,
Que comigo quer viver;
Ao desespero
Que comigo quer morar;
À sorte
Que também me quer esquecer;
À vida
Que me quer abandonar!
Eu sei
Que sem ti não sei viver,
Sem ti
Eu vou por certo sufocar!
Meus versos, meu amor,
São como um ventre que te anseia,
Mas é bizarro
Porque eu ventre não tenho…
Será que te sinto em mim
E quero teu ventre
Para poder escrever o verso apaixonado?
Gil Saraiva
XII
"OS POEMAS DA VIDA”
Os poemas da vida
São versos feitos dos atos
Que nos unem:
Nas tristezas e amarguras
Que nos cercam,
Na alegria e solidariedade
Que somos,
Nas escolhas e no destino
Que escolhemos
No passado e ações
Que praticámos,
No futuro e nos sonhos
Que projetamos,
No presente e na realidade
Que não queremos ver!
Os poemas da vida
São como o dia
Antes da noite
Que virá, por certo, um dia!
Gil Saraiva
XI
"A EXORAÇÃO DOS POSTREMOS"
Há quem lhe chame a súplica dos derradeiros,
Outros preferem o grito dos últimos,
Mas todos se referem à pandemia.
A este combate sem as armas dos Senhores da Guerra,
Tão mundial como outras já passadas,
Que mata a eito,
Sem respeito
Por quem só quer viver em paz.
A Grande Terceira começou,
Não quer parar,
E ainda não parou…
Pode não ser a última
Ou nem mesmo a derradeira,
Do milénio é a primeira,
Amarga, selvagem, fatal,
Mata, infeta é traiçoeira.
E foi nascer num Natal,
Qual Anticristo safado,
De natureza viral
Que adora a confusão
De destruir em pecado.
Chegou a grande Terceira,
Horrível, fria, abafada,
Virológica maneira
De atacar, com agonia,
A Terra já gasta, usada,
Com a mortal pandemia,
Gerando o caos, confusão.
A muitos tirando o pão,
A outros a vida inteira…
Chegou sinistra, oculta, grosseira,
A enorme e a Terceira
Grande Guerra sem Fronteira
Fatalmente humanizada,
Obrigando gente infetada,
A lutar amargamente, sem futuro, nem presente,
Mil batalhas desiguais,
Deixando a Terra sem nada,
Filhos sem avós ou pais,
Num terror sem explicação,
Sem amor, sem compaixão.
Esta é a exoração dos postremos,
Há quem lhe chame a súplica dos derradeiros,
Outros preferem o grito dos últimos,
Mas todos se referem à pandemia!
A Terceira Grande Guerra Mundial ainda não acabou
Mais de dois milhões matou,
E ainda agora começou…
Gil Saraiva
X
"REVOLUÇÃO"
Quem viveu os conturbados dias?
Aguardo um pouco, mas
Ninguém responde…
A consciência
Da dimensão trágica
Parece esquecida
No sorriso dos lábios,
Na palidez dos rostos,
Na indiferença das atitudes,
Nos infantes hinos da nação.
Quem viveu os conturbados dias?
Pergunto novamente e, de novo,
Ninguém responde…
Não deixa de ser irónico
Ver, assim, perplexas,
As massas revolucionárias
Da Terceira República!
Na busca dos porquês tento entender
Que oportunidades se perderam
Nos relatos eufóricos dos triunfos,
Das conquistas de Abril,
Já esquecidas,
Pensadas hoje como meras situações quotidianas,
Porque, quem as viveu, se sente ofendido,
Na adulteração burlesca da revolução…
Se sente, enfim, fantasma
Do processo revolucionário,
Dimensão tradicional da dúvida política
Quem viveu os conturbados dias?
Pergunto pela última vez.
Ninguém responde.
Gil Saraiva
Nota: Estamos a pouco mais de dois meses de celebrar a revolução dos cravos, o 25 de abril de 1974. No dia 26 de abril inicia-se a contagem decrescente para a celebração do quadragésimo sétimo aniversário. Nessa alura Portugal celebrará quase tantos anos de democracia, menos um, como os que teve de Salazarismo. Faço votos que então a democracia plena e a liberdade já tenham regressado à sua plena forma, sem Estados de Emêrgência, calamidade ou outros, sem confinamentos, nem proibições limitadoras da nossa liberdade. Faço votos...