IX
"TOURADA DOS CONDENADOS"
Será que haveria
Tourada se aos touros
Os cornos faltassem
E ao toureiro não?
Quem, nesta coisa, afinal,
É realmente a besta, o animal?
A música é bem bonita,
Escuta-se a trompeta na arena,
Mas depois?
Depois é sempre a mesma cena,
Que o palco é circular
E a besta é quadrada,
Falo da que vem montada
Num cavalo espetacular.
É a quadratura do círculo,
Num circo de ferraduras…
Depois vêm os forcados,
Que se fossem condenados,
A cumprir penas duras,
Castigos, de mão pesada,
Pelos crimes dessas vidas,
Não me custava nada
Vê-los no meio das lidas,
Com touros sem bandarilhas,
À procura das breguilhas.
Na tourada os condenados
Deviam ser os toureiros
E também os cavaleiros
Pagando por seus pecados.
Porque ama a raça humana,
Sem piedade, a violência,
Terá de ser sempre insana,
Desconhecendo a clemência?
Gil Saraiva
VIII
"NA TUA AUSÊNCIA"
Amar
É o poder de ver
Quando se é cego.
Amar
É sentir frio
Bem no pico do verão.
Amar
É ser andorinha feliz
A meio outono.
Amar
É sentir saudades ao teu lado,
Só de imaginar a abstinência
De ficar sem ti, abandonado.
Amar
É sentir a falta, a carência,
Do teu sorriso branco, esmaltado,
Um segundo depois da boca teres fechado.
Amar
É essa amarga permanência
Do receio de perder-te, meu amor,
Sem, no entanto, ter a consciência,
Do que é viver sem ti, sem teu calor.
Amar
É mais do que paixão,
É um querer com insistência,
Verbo que não conjuga solidão,
É não sobreviver na tua ausência.
Gil Saraiva
VII
"CHEGOU MEU FIM!”
O que resta
Da minha alma desumana,
Deste meu ser, agora, aqui,
Deixado?
O que minha paixão
Tem de humana
Não explica
Porque fui abandonado.
Quem me pode salvar
Não quer saber,
E quem eu quero amar
Não me parece ver.
“- Ó flor que brilhas no jardim
Deixa que eu te colha.”
Nada responde a flor
Chegou o fim!
Não me interessa, jamais,
Falar de mim.
Nada me importa mais,
Chegou meu fim!
Gil Saraiva
VI
"O ANONIMATO"
Anónimo de coisas e pessoas,
Sou como uma parede para os outros,
Um vidro sujo em que ninguém repara,
Neste tempo de pandemia, máscara no rosto,
Óculos escuros e chapéu, pareço saído de um filme,
De vaqueiros e foras-da-lei do velho oeste.
Olham…
Sem sentir minha existência,
Pois na paisagem eu não tenho cor.
Anónimo num mundo de mundanos mascarados,
Sou estátua velha,
Apagada e nunca vista
Nas memórias de quem por aqui passa,
Neste eterno Carnaval sem corso, desfile ou folia.
Parede sou ou talvez apenas muro.
Com ouvidos, sem garganta,
Distante fogo que perdeu o fumo
E, rude de calor,
Já não atraio,
Mal ardo agora e só o nada afeto.
Anónimo de tudo,
Confinado,
Mantendo a distância social,
O anonimato sou,
Por ser a negação do ser humano.
Estou sozinho como tu
E tantos outros,
Começo a esquecer a liberdade.
Talvez um amanhã, um dia, um sei lá quando,
Eu tire a máscara
E descubra o meu sorriso,
Abandonando o meu anonimato.
Gil Saraiva
V
"O VERBO AMAR"
Poderá o absurdo,
De uma maneira ou de outra,
Fazer algum sentido?
Terão olhos alguns já ter visto
Coisa que brilhe
Mais do que uma estrela?
Conseguiremos encontrar
O abstrato
Naquilo que concreto sempre foi?
Existirá algures
Um algo mais perfeito
Do que um diamante magistralmente lapidado?
Será que o que a Terra tem de belo,
Do pôr-do-sol à Lua Cheia,
Se consegue sentir em obra humana?
Tudo pode acontecer
No dia em que o absurdo se evaporar,
Na hora em que a luz não nos deixar ver,
No minuto que o abstrato se espelhar,
No segundo perfeito que, por ti, eu possa ter
Esse exato momento para sentir
Que o impossível desconhece o supremo
Dom da raça humana.
Que se traduz na força sobre-humana,
Vinda de um sentimento de alma, único, divino,
Que um só alguém a nós nos possa dar,
Ao fazer no coração dobrar o sino,
Ecoando bem alto o verbo amar!
Gil Saraiva
IV
"APENAS POR TE AMAR"
Por mais bela
Que seja uma paisagem,
Por mais perfeito
Que se encontre o equilíbrio natural,
Por mais insana
Que nos pareça uma miragem,
Por mais suave
Que possa ser a mão humana,
Numa festa meiga ou sentimental,
Por mais louvado
Que seja o romantismo
De um galante cavaleiro sem pretensiosismo,
Por mais, ás vezes vagamente,
Que me lembre, algures na minha mente,
Do espaço vazio desta cadeira,
Descubro que a causa é verdadeira,
Tem a ver com a alma, o sentimento,
O coração que bate,
Em contratempo, no momento
Em que te sabe ausente
Porque tu, meu amor, não estás presente.
E por desejo, por amor, pelo que seja,
Quero te sentir perto, como enseja
Todo o meu ser, que grita viciado
Do teu olhar, do teu ser,
De cometer em ti mais um pecado.
Ganha a saudade, contornes de impossível,
A ansiedade cresce e é visível,
A tua ausência torna-se certeira,
A dor no estomago ascende sem motivo,
Porque existir sem ti, desta maneira,
Me tira a razão pela qual vivo:
Amar-te, meu amor e me salvar,
Porque te quero, apenas por te amar!
Gil Saraiva
(Mestre Isolino Vaz - Anos 70)
III
"MESTRE"
Mestre
Entre os mestres lusitanos,
Pintor de uma só arte
E vidas muitas,
De traço certo, firme e imortal
No retratar de um mundo que era o nosso!
Retratos vivos,
De vivos e de outros idos,
Descrevendo almas e figuras,
Por entre os traços,
Em cada pincelada…
À pena, de caneta, esferográfica,
Carvão, pincel de óleo ou aguarela,
Transparente no traço
E na pintura,
Como se em cada tela,
Vitral, ardósia, cerâmica ou barro,
Se vislumbrasse o ser,
Tal como sai perfeito o mel à abelha,
Ele assim as almas também espelha.
De um neorrealismo único,
Com a transparência
De vidro ou de janela,
O Mestre retrata a figura
Onde por detrás a alma espreita.
Vidente de almas
De figuras de ilustres lusitanos,
Ou do povo no seu todo
Ou parte a parte,
O emigrante, o mineiro,
O filósofo, o escritor,
O Povo, o herói, a personagem,
Que nada se esconde ao traço do pintor,
Mestre maior do retrato em Portugal.
Mestre Isolino Vaz
Tinha por nome,
Pintava o sentimento com amor,
Desenhava a pobreza,
A dor e a fome!
Mestre a ver a vida,
A ver a morte,
Nenhum outro como ele pintava
A ditadura, o vício, a avareza,
O luxo, a vida dura,
A injustiça,
A falta de nobreza,
As mágoas do infinito,
Os rios do tormento,
As vagas da aflição,
O pó, o fel
E o chão…
Gil Saraiva
(Miguel Torga por Isolino Vaz)
II
"À PENA LIVRE"
Escrevo,
Sem pensar,
À pena livre,
Porque é bom viver em liberdade,
Porque se alguém,
Um dia,
Numa gaiola prender uma andorinha,
Não conseguirá, contudo,
Reter a primavera!
Escrevo,
Escrevo sem pensar,
À pena livre,
Porém, se alguém as minhas letras,
Um dia, quiser ler,
Num livro cujo autor tenha de mim o nome,
Não ficará feliz,
Pois publicar não posso…
Faltam-me as cunhas ou as notas,
Que não as letras e os poemas,
As histórias, os relatos e as crónicas,
Os contos, as legendas, os romances,
Para os ou as pensar
Em liberdade!
Porque eu escrevo,
À pena livre,
Voando pelos ares imaginários
Dos sentidos,
Esses, que têm o defeito
De nos dizer, enfim,
Que efetivamente
Estamos acordados,
Mas de pena presa,
Na nossa condição comunitária!
Pensava eu
Eu escrevia à pena livre,
Livre é, na verdade,
A minha pena,
Essa de não conseguir publicar
Em liberdade!
Mas eu escrevo,
Sem pensar,
À pena livre,
Porque é bom viver em liberdade
E guardo nas gavetas da memória
O que, um dia, quis dizer aos outros,
Sem que me prendesse a sociedade!
De qualquer modo
Eu escrevo,
Sem pensar,
À pena livre!
Gil Saraiva
I
"NEVA NO ALGARVE"
Neva no Algarve
Em cada amendoeira…
Os primeiros turistas
Vão chegando ao Sul.
Vêm em bandos
Sedentos de conquilhas,
Esses bivalves lindos a quem os lisboetas
Chamam cadelinhas,
Porque a cultura
Não respeita a origem.
Neva no Algarve
Em cada amendoeira
Que ninguém a chame de neveira…
No olhar claro dos normandos,
Saxões e germanos,
Na pele clara de alfacinhas e nortenhos,
Que pelo Algarve
Se vão diluindo com a natureza,
Com as povoações,
Se refletem e se espelham
Cataplanas de sonho almareado,
De golfe e de gozo,
Tão claros como o nosso céu.
Neva no Algarve
Em cada amendoeira
Dizem os turistas à sua maneira…
Vende-se o Algarve,
Tudo está “For Sale”
E o algarvio de bolsos vazios
Se rende, vassalo, ao tocar do sino
De algumas libras, dólares e outros euros…
Neva no Algarve,
Em cada amendoeira,
Mesmo com pandemia…
Mesmo sem turistas,
Sem noite ou veraneio,
De bolsa vazia,
Sem festa,
Que do marisco nem o cheiro.
Neva no Algarve
Em cada amendoeira
Em cada algarvio
De cultura feita para fazer dinheiro
Entre sesta e sono.
E o corridinho é dançado à pressa
Antes que o outono
Leve embora os bandos,
Que por cá não ficam…
Neva no Algarve,
Mas a neve é outra…
Gil Saraiva
Introdução
Chamar a este livro de poemas “A Exoração do Postremo” foi uma escolha fácil devido à sua temática verso após verso, poesia após poesia. Com efeito, trata-se da suplica do último dos vagabundos ou, posto noutra perspetiva, do último dos amantes que ainda acreditam no poder e no clamor do romantismo. Situações de pedidos de apoio piegas ou desinformados são coisas que não se adequam à natureza deste livro, que procura antes do mais servir de mensagem às mais profundas e sérias exorações de um Haragano do Éter ou de um Senhor da Bruma.
Todavia, todo e qualquer postremo parece, à partida um desesperado o que não é efetivamente o caso neste livro. Aqui trata-se mais do último grito do último dos românticos, em jeito de súplica dirigida a quem, tendo vontade, querer e acreditar, o pode, talvez, numa ou outra circunstância, ajudar com um fidedigno conhecimento das causas e dos efeitos deste dar a mão.
Mais do que tudo, o importante é deixar o alerta para que ele possa ser lido, ouvido pelos corações, para quem a leitura basta para conseguir-se entender um apelo dirigido ao âmago e ao cerne de quem ainda sente com sentimento e não apenas com os sentidos. Entender “A Exoração do Postremo” é compreender a alma do último dos seres que suplicam pelo direito absoluto ao sentimento.
Gil Saraiva