VI
"DIAS DA DEMOCRACIA"
«Vamos portugueses ao trabalho,
Vamos fazer disto uma nação,
Se sou escultor eu assim talho
A estátua da nossa salvação.
Tu tens de dizer “- Fiz quanto pude.”
Para eu poder dizer que livre sou,
Porque se no trabalho está a virtude,
Do trabalho construi, moldei e fiz
Aquilo que sou!»
Uma lengalenga própria de um político,
Que, chegado ao poder, logo se achou
Detentor da moral e do caminho
De quem em nele votou ou não votou.
Não deu exemplo, mas mudou de gravata,
Falou em vão, em tom de quem ata e desata.
Tudo dito sem pensar no que se diz e porque, apenas,
Para os políticos o prometido é de vidro,
É frágil, é, somente, a intenção pura
De uma alma amargurada,
Que pode tentar tudo sem jamais conseguir nada!
São estes os dias da democracia ocidental,
Que se vivem agora, em todo o lado,
Democracia comprada pelo capital,
Coberta de valores sem significado,
Onde o imposto é mais valia,
Onde o pobre não é culpa do regime.
Palavras ocas onde a cobardia
Ganha foros de instituição e escola
Enquanto cada vez mais cidadãos
Se ficam por migalhas ou esmola.
A palavra democracia está cariada.
Por favor, levem-na ao dentista…
Gil Saraiva
V
"A MARGEM DO RIO"
Lembrei-me hoje do Arade,
O rio que nasce a Sul, no Caldeirão,
Passa Silves e desagua no Atlântico
Separando Lagoa e Portimão.
Setenta e cinco quilómetros de água doce,
Vinda da serra algarvia onde nasceu,
Para dar vida ao sequioso barlavento,
Maior do que o Gilão, a sotavento.
Um rio velho nos anos,
Pleno de tradições, fados, saudades,
Memórias de um Algarve antigo onde o castelo
Recorda os tempos do reino à beira-mar,
Lembrando mouros, batalhas e conquistas,
Cavaleiros e nobres feitos alpinistas.
Descansa Silves pelas verdes colinas,
Instalado na calma à beira Sol.
É triste o descansar desta cidade,
À beira-rio assoreada, entristecida,
Há séculos sem o porto majestoso
Que outrora lhe deu fama, glória e vida.
É triste o arrastar da urbe antiga,
De altivo castelo vigilante,
Ainda atento a séculos de história…
É triste o repousar, pois que esquecida
Parece estar do mundo a terra amada,
Estagnada nas areias do rio e das ribeiras.
Silves dorme, mas não sonha,
Anseia um despertar, um sortilégio,
Um líder nascido das águas, por ventura,
Como outro que a sede lhe matou,
Em tempos idos, D. Sancho I,
Rei de Portugal e do Algarve.
Silves espera paciente nestas horas,
Porque sabe esperar, é tradição,
Aguarda serenamente, mas com esperança,
Porque a espera não será em vão,
A chegada de um filho do Arade,
Para se erguer altiva uma vez mais.
A margem do rio tem os seus segredos,
Cenas de dor, de luta e de paixão,
Desde a serra que vem, entre penedos,
Traçando planos, barragens, erosão.
Foi na margem do rio que eu conheci,
Nos idos anos de um milénio já passado,
O calor franco do amar demais,
Em plena noite de São João.
Lua cheia, preenchendo-me amplamente o coração,
Pelos olhos de água de uma mulher divina,
Em corpo adulto um rosto de menina.
A pele morena,
Vestes feitas de brisa acalorada,
Um sorriso perfeito de que vale a pena
Esperar por sentir a alma apaixonada.
Foi nessa mesma noite que fizemos amor,
Ali, na margem do rio, sem vergonha,
Sob a vigília da Lua prateada
Brilhando nos olhos de quem sonha
Sentindo entre os braços sua amada.
Adormeci ao luar abraçado a esta mulher,
A quem jurei amor, fulgor, dedicação,
A quem me dei de alma e coração,
Que a margem do rio, haja o que houver,
É testemunha da nossa paixão.
Porém, a manhã me despertou sozinho,
Procurei a minha deusa enfeitiçada,
Mas qual borracho em abandonado ninho,
Na grande busca não encontrei nada.
Passou num jumento um velho ermita,
Sorriu-lhe tristemente a face enrugada
E interrogou, como por desdita:
- Foi sua, esta noite, a Moira Encantada?
Gil Saraiva
IV
"LAGO NEGRO"
Um lago negro
Em cristalino olhar
Reflete uma cândida ternura
Na busca de outros olhos
Que ao brilhar
Iluminam o lago, por ventura,
Por desejo, sonho ou ilusão,
Trazendo esperança, vida e emoção…
Hoje, agora e sempre,
No quotidiano dia-a-dia,
O lago de antracite faz sentir
Que o pôr-do-sol
Afaga as sombras
Mas não a saudade,
Que esta nunca teve bruma ou escuridão.
A pouca distância, escuta-se um vento,
Que vem vindo, soprando em assobio agreste
Uma melodia que fala de amor,
Porque o amor nunca foi suave…
Sopra da praia, deserta na pandemia
Por decreto do Estado de Emergência,
Acompanhando o grito do mar
Que berra uma agonia
À areia da beira-mar,
Pejada de turistas de plástico e alumínio,
Que a maré trouxe clandestinamente à costa
Sem defesas ou decretos que lhe valham.
A natureza agita-se revoltada,
Talvez porque a vida não tem partos sem dor,
Mas além, onde o lago negro vê
Chegar de mansinho o crepúsculo,
Que antecede a escuridão,
As formas tornam-se confusas,
E não há diafragma
Que ajude à nitidez dos registos e das formas.
Afinal, nesta guerra entre luz e breu,
Só uma nova aurora,
Num amanhã ainda não lembrado,
Pode trazer ao espaço o regresso das imagens,
Porque a esperança
Precisa de luz,
Tal como o lago negro,
Para poder brilhar.
Sinto que o lago negro
Busca um espelho irmão,
Um olhar procurando outro olhar que desconhece,
Uma procura insana que acontece,
Para que o lago brilhe na sua escuridão.
De súbito, um sorriso perdido,
Adormecido,
Por entre os cabelos da quase noite,
Naquele iniciar de primavera,
Já com uma hora a mais de novo horário,
Parece surgir de uma janela
Onde alegre chilreia um canário.
Alguém aparenta procurar dar a mão
A uma outra que seja solidária,
Na esperança de que a noite que chega
Não lhe diga, sem porquês, apenas não,
Contrariando a pedra calcária
Da calçada portuguesa,
Que se mostra bem mais revolucionária,
Naquele jardim onde brilha o lago negro.
Os cabelos da noite invadem a paisagem,
Apontando mistérios por entre a neblina,
Ninguém vê o olhar de uma mulher, menina,
Procurando o brilhar do negro lago,
Como quem busca conforto ou afago,
Com quem possa por fim se descobrir
No sorriso de um olhar que há de vir…
Gil Saraiva
III
"O IMPOSSÍVEL"
O impossível apenas demora mais tempo,
Afirmo, ao meditar,
Na noite escura,
Na busca infama desse contratempo,
Que me obriga a reagir e a lutar
Por mais que a minha luta seja dura.
Eu sei que existem verdades teimosas:
A vida é a doença suprema,
O doente morre sempre, haja o que houver!
Eu sei que há coisas tenebrosas
Na dor que se transmite num poema,
No âmago de quem sofre, de quem quer
Apenas aplacar a sua mágoa,
De quem tem sede sem ter falta de água…
Mas não sei
O que fazer para não sentir…
Não sei
Como ou porquê hei de esquecer…
Não sei
Se desse rumo devo desistir,
Se é melhor recordar
E por isso sofrer,
Se poderei amar,
Sem poder rir,
Se poderei viver e não sorrir…
Mas sei
Do momento em que te perdi…
Sei que para ti nada mais sou…
Sei que, para ti,
Eu só vivi
Enquanto um outro
Não voltou!
O impossível apenas demora mais tempo e afinal
Se esse não vier
Ou te quiser,
Eu posso, em minha luta, triunfar,
E até pôr um fim neste meu mal,
De teu coração eu não tocar…
Tudo é relativo neste mundo,
E a verdade absoluta de agora
Pode já não a ser,
Noutro segundo,
Porque a realidade muda a toda a hora.
Mas eu quero o universo
E seu poder…
Nada de ser famoso
E infeliz.
Eu quero é ter-te a ti
E esquecer
Um mundo, a quem a minha sorte
Nunca quis.
Eu quero combater a morte
Do que sinto, do que que me faz feliz.
Eu quero é ver o infinito,
Acolher, entre mágoas e cansaço,
No calar forçado de um forte grito,
A dimensão total do nosso amor,
Em versos que se esqueçam da dor.
Eu quero introduzir o universo
No restrito espaço
Deste verso…
Eu quero é poder,
Poder-te amar
Para em ti a fama
E a glória conquistar!
E se o impossível apenas demora mais tempo, minha querida,
Por ti eu espero a eternidade, eu espero toda a vida…
Gil Saraiva
II
"FOGO POSTO"
Ardeu mais um pinhal
Na minha terra.
“Foi fogo posto!”
Leio nos jornais.
Ardeu esta minha alma
Um pouco mais
Neste mundo
De chamas e de guerra.
Não!
Mais uma vez eu digo: não!
Ver o negro da terra queimada
Ocupar o verde
Por onde animais e passarada
Cantavam hinos de vida
E de natura,
É como perder-te uma vez mais,
Sentir o teu amor perder altura,
Fazendo-me cair
No abismo da rutura.
Não me interessa viver
Entre meus ais,
Não quero mais ficar assim.
Se não te posso ter
Perto de mim,
Não quero também a piedade,
Esse fogo posto,
Feito caridade,
Para na chama dos meus sentimentos
Tentares diminuir os meus tormentos.
Não me ajuda
O subsídio piedoso
Que me dás,
Não desejo sentir teu coração fatal
A dar-me esmola
Tão sentimental,
Prefiro, mesmo agora,
Que te vás!
Ardeu o eucaliptal
Junto à serra
“Foi fogo posto!”
Diz o telejornal…
Morreu…
Morreu a combater o fogo
Um velho otário,
Dizem ter sido um bombeiro voluntário,
Homem de honra, s oldado da paz,
Que com mangueiras de impossível
Fez o que pode
E o que foi capaz.
Quantos terão de morrer?
Ainda mais?
Por certo morrerão, pois,
São fatais
As labaredas que se alimentam destas vidas,
Que lutam sempre, destemidas,
Em causas, por amor,
Em cada trama.
É fogo posto,
Nas almas perdidas,
Que ao acender a lágrima
Não apaga a chama!
Gil Saraiva
I
"VENTO"
Sopra mais forte o vento
Nesta noite,
Vem assobiando melodias
Que nem sempre conheço.
Sopra sempre assim
Na minha alma
Desde que a pandemia
Começou,
Desde que a nostalgia
Se instalou…
Sussurra-me aos ouvidos:
“- Desespero…”
Procuro entender o nobre vento,
Busco a verdade
Na bruma do quotidiano,
No etéreo da internet,
Vestido de névoa,
Por um desconhecido caminho de neblina.
Busco a verdade
Na palavra segredada
E descubro-a vestida de medo
Bordado de infinito.
Não quer o pobre vento a eternidade…
Está cansado da amarga história,
Amiga de tudo o que fim nunca mais tem!
Às vezes penteia as árvores
E despenteia a gente,
Que no seu caminho se atravessa.
Volta a falar comigo o vento norte,
Sibilando os esses e os zês
Numa pronúncia soprada
Por entre a neblina,
A névoa, a bruma:
“- Se… se pudesse ser assim como tu és…
Seria o mais feliz dos elementos,
Porque tu, humano, tens um dom:
Sabes que um dia,
Ao bater das horas incertas,
Morres para sempre!
Já eu…
Posso descansar na duna
De um deserto,
Ser brisa amena,
Tornado
Ou tufão na tempestade,
Cósmico no espaço,
Sopro solar,
Em quente movimento,
Ou mera aragem,
Mas venha a peste negra,
A gripe espanhola
Ou esta pandemia,
Continuarei soprando segredos
Sem mensagem.”
Gil Saraiva
Um Novo Livro que Começa para Assinalar o Dia Mundial da Poesia
Introdução
Plectros de um Egrégio Tetro Umbrático é um livro que nasce numa época estranha, em tempos de pandemia, distanciamento social, confinamentos e desconfinamentos, tempos em que o beijo é mais do que pecado e o abraço pode ser fatal. Tempos inumanos, surreais e absurdos. Tal como o título, que parece saído de um palavreado há muito em desuso, pela clara queda da utilização de cada uma das palavras que o constituem. A ideia de arcaico vem-nos à cabeça, sem que isso seja necessariamente verdade, afinal, “Plectros de um Egrégio Tetro Umbrático”, nada mais é do que “Poesias de um Senhor da Bruma Imaginário” ou, como diriam os ingleses, “Poetry of an Imaginary Mist Writer”. Um escritor, neste caso um poeta, que tenta ver para além do nevoeiro, da bruma ou do etéreo a que, hoje em dia, damos o nome de internet.
Tudo se desenvolve na imaginação do homem que escreve por entre a neblina de uma vida tornada confusa, em tempos disformes de uma pandemia ditadora.
Gil Saraiva