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IX
"CAI O MEDO"
Cai o medo na cidade
E chamam-lhe noite.
Porém,
O Sol sorri ao Povo intimidado,
Mas para os que tremem
No calor
O eclipse aparente não existe
Pois, pura e simplesmente
Já estão cegos...
E para todos eles
As Trevas são reais...
Cegos de medo,
Sedentos de conforto e segurança,
Amantes do estável e do firme
Porque nada mais há de tão hipnótico...
Eles:
Cegos, sedentos e amantes,
São os condutores
Da noite eterna...
"- O Sol só queima o corpo,
Eu nunca o vi brilhar
Na minha alma..."
Parecem dizer as bocas mudas,
Fechadas na noite,
Cariadas de vontade própria...
Cai o medo na cidade
E chamam-lhe silêncio...
Ninguém ouve, ali, agora,
Os gritos dos amordaçados,
Calados pelo estômago,
Apagados no marasmo da noite
E do silêncio...
Cai o medo na cidade
Mas ninguém, ninguém,
Mesmo ninguém
O parece sentir...
No fundo
Todos somos autistas,
Na noite e no silêncio,
Do vil quotidiano...
O medo não vem no dicionário
É mero gene transmitido...
"- Antes sobreviver do que viver..."
Pensamos todos nós
Sem repararmos
Que o nosso pensamento é viciado...
Somos filhos da noite
E do silêncio...
Cai silenciosa a noite na cidade
E ninguém,
Mesmo ninguém repara
Pois só caiu de noite
E em silêncio...
Gil Saraiva
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III
“BALADA DO 25 DE ABRIL”
Na negra noite andaste
Décadas mudo, sem pio
Ai, nessa vida passaste
De emigrante a vazio...
Anos assim de tortura,
Silêncio sem liberdade...
Para ganhar à ditadura,
Tens que morrer com vontade...
Quarenta e oito, um a um,
Anos de fome, ilusão,
Criaram força incomum,
De resistir na prisão...
E o vinte e cinco de abril
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
E cantar Sérgio Godinho,
Zeca Afonso e outros mais,
É ser na voz adivinho
Daquele abril de imortais...
Na negra noite andaste
Décadas mudo, sem pio,
Ai, nessa vida passaste
De emigrante a vazio...
Sempre lutar contra engodos,
Contra a PIDE e o calar,
Nasce o Sol, é para todos,
Cabeça erguida a sangrar...
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
E agora que o Sol nasceu,
Na noite clara de abril
Mais de trinta, conto eu,
São os primeiros de mil...
Na negra noite andaste
Décadas mudo, sem pio…
Ai! Nessa vida passaste
De emigrante a vazio...
Mas tão curta é a memória
De um povo que já esqueceu
Que Salazar tem na História
A nossa noite de breu...
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
De economia vivemos,
P'ra nos manter lutamos,
Casa e emprego não temos,
Quem nos pergunta onde vamos?
Somos: imposto, tributo,
Finanças ocas, impostas,
Eu não estou só, num reduto,
Há mais quem queira respostas!
Que o crepúsculo, a madrugada
Anuncie sem ter saudade...
Queremos não ver estragada
Nossa razão, liberdade!
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
Prisão p´ra quem enganou
O nosso Povo, afinal,
Não tem perdão quem roubou
Nossa alma em Portugal.
Os passos foram enganos,
Mas a memória não esquece,
Pelos Direitos Humanos
Justiça a quem a merece!
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
Urge de novo escutar:
“—Aqui!
Posto de Comando
Do Movimento das Forças Armadas!"
Das nossas Forças Armadas!
Gil Saraiva
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X
"REVOLUÇÃO"
Quem viveu os conturbados dias?
Aguardo um pouco, mas
Ninguém responde…
A consciência
Da dimensão trágica
Parece esquecida
No sorriso dos lábios,
Na palidez dos rostos,
Na indiferença das atitudes,
Nos infantes hinos da nação.
Quem viveu os conturbados dias?
Pergunto novamente e, de novo,
Ninguém responde…
Não deixa de ser irónico
Ver, assim, perplexas,
As massas revolucionárias
Da Terceira República!
Na busca dos porquês tento entender
Que oportunidades se perderam
Nos relatos eufóricos dos triunfos,
Das conquistas de Abril,
Já esquecidas,
Pensadas hoje como meras situações quotidianas,
Porque, quem as viveu, se sente ofendido,
Na adulteração burlesca da revolução…
Se sente, enfim, fantasma
Do processo revolucionário,
Dimensão tradicional da dúvida política
Quem viveu os conturbados dias?
Pergunto pela última vez.
Ninguém responde.
Gil Saraiva
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XVII
"POETAS DO MEU PAÍS"
Os poetas do meu país
Têm consigo guardados:
Uma chama indescritível,
Uma missão de registo sentimental,
Um fazer do possível impossível,
Um apontar o bem, mesmo se agindo mal.
Poesias metafísicas de trovadores sombrios e imaginários,
Onde, nas letras de cada um, vive a nobre perfeição,
A chave de mil dilemas,
De processos temerários,
Sobre a vida, a morte, o amor e a solidão.
Tudo arquivado por temas,
Desde a célula à libélula,
Da anarquia da selva ao fresco leito da relva…
Há, nos poetas do meu país,
Muito paleio e conversa,
Um saber de quem tem veia,
Uma doutrina perversa,
Fominha de pança cheia.
Desejos de vai e vem,
Poligamia em fartura,
Uma forte cornadura
E uma vasta presunção.
Os poetas do meu país escrevem
Plectros de um egrégio tetro umbrático,
Afirmando que é prático,
Assim escrever a prosa, a rima,
Pois isso vem-lhes da sina,
Da hermenêutica dos esquemas
Transformados em poemas,
Nos haréns feitos palavras, no copular da paixão,
Nos casos acidentais e noutras coisas, que enfim,
Seria falar de mim…
Gil Saraiva
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XVI
“PELAS BOCAS DO MUNDO”
Ouvi alguém dizer, faz pouco tempo,
Que o mundo está em vias de extinção.
Que o Homem devia, quanto antes,
Preparar o êxodo, a grande migração,
Por ser preciso tentar, enquanto é tempo,
Salvar a Terra da autodestruição.
Oiço muitos disparates no café,
Nas redes sociais são às mãos cheias,
Teorias imaginadas num simples rodapé,
Sobre mais uma fatal conspiração,
Criada no mundo das ideias.
Coisas vindas de uma ou outra negação,
Disparates, mentiras, cefaleias,
Mas sempre ornadas de aberração.
Há quem queira fugir pela Via Láctea,
Rumar ao infinito e mais além,
Subir pelas encostas do universo,
Tentar, pelas estrelas, a fuga no espaço,
Como se fosse possível cada passo,
Só porque alguém
O pôs em verso,
Numa bíblia escrita por ninguém.
Vivemos desafios a cada dia,
É verdade, não há como negar,
Hoje é o ambiente, a pandemia,
Amanhã será a guerra, o oceano, o mar.
A cada momento um problema,
Uma charada, uma loucura, uma ilusão.
Varia na atualidade o tema,
Isso é claro, na verdade, com certeza,
Sempre nasce um novo lema, por segundo.
Tudo se transforma, é essa a natureza,
Mas não pelas bocas do mundo.
Gil Saraiva
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XV
"ESTE FOI PARA TI"
Este foi para ti,
Para mais ninguém!
Desde de que um dia juntámos trapos,
Em que experimentei casar
(E dei-me bem)
Que, como por milagre, fui feliz.
Habitat de mim, tu foste embora,
Vida que no inverno,
A qualquer hora,
Podia florir, dar frutos e sorrir.
De ti vieram filhos, foram dois,
Dos nossos corações brotou a vida,
Dos teus caracóis, adormecida,
Resta agora a saudade
Em sonhos de ilusão.
Deste que foi para ti, para mais ninguém,
Onde as palavras foram todas tuas,
Já nada resta, tudo é distante e mais além.
Foi-se o querer, o crer e o dever,
Partiu o direito, o compromisso,
O gosto e o gozo até,
Porque amar implica devoção,
Empatia solidária e paixão.
Deste que foi para ti
Não resta brilho,
Não nasce o Sol para dar luz à nossa vida,
Agora apartada, dividida,
Por um impossível regressar
Ao somos, ao uno, ao amar.
Este foi para ti,
Para mais ninguém,
Quando dentro de mim eras alguém.
Gil Saraiva
![Fado do Pescador Algarvio.jpg Fado do Pescador Algarvio.jpg]()
XIV
"FADO DO PESCADOR ALGARVIO"
P’ra ir ao mar com levante
Algarvio, o pescador,
É formiga que elefante
Combate o mar com fulgor.
Combate no mar bravio
Ondas, que a água elevou,
Mais altas do que o navio
Que até ali o levou.
(Refrão)
Homem ao mar, grita alguém,
Depois de vaga tremenda,
Que fora de bordo há quem
Possa morrer na contenda.
Uns dizem ser a bombordo,
Que o homem ao mar caiu,
À popa ou a estibordo,
Mas afinal ninguém viu.
De repente à claraboia,
O capitão vê marujo
Agarrado a uma boia,
Molhado, com medo, sujo.
(Refrão)
Homem ao mar, grita alguém,
Depois de vaga tremenda,
Que fora de bordo há quem
Possa morrer na contenda.
Se não há peixe na rede,
Agora importa bem pouco,
Que ninguém tem fome ou sede,
Que a luta é coisa de louco.
Há que salvar o Facada,
Puxá-lo para o convés,
Antes que onda marada
Possa trazer um revés.
(Refrão)
Homem ao mar, grita alguém,
Depois de vaga tremenda,
Que fora de bordo há quem
Possa morrer na contenda.
Contra Neptuno lutar,
Que o mestre já decidiu,
Tirá-lo daquele mar,
Pois que ninguém desistiu.
O Trunfas atira a corda,
Logo a apanha o Facada,
Puxado é pela borda,
Com a boia à corda atada.
(Refrão)
Homem ao mar, grita alguém,
Depois de vaga tremenda,
Que fora de bordo há quem
Possa morrer na contenda.
Nadar, sueste vencer,
Com a luta terminada,
Voltar atrás, sem perder,
Passar a barra agitada.
Não há ali quem se queixe,
Vazia a rede ficou,
Desta vez não houve peixe,
Outra vida alguém ganhou.
(Refrão)
Homem ao mar, grita alguém,
Depois de vaga tremenda,
Que fora de bordo há quem
Possa morrer na contenda.
Gil Saraiva
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XIII
"O SEXO FRACO"
O sexo fraco
Sempre me pareceu mais forte do que eu.
Logo à partida
Tem mais um sentido,
O sexto, que diz ser importante,
E tem o dom de conduzir a vida
Com paciência e calma
Numa luta dura, injusta e tão constante.
A meu lado o sexo fraco
Não demonstra fraqueza em ato algum,
Aguenta comigo em cada ato,
Como se fosse natural e tão comum.
Estranha força o sexo fraco aparenta ter
Ao saber como agir, ser, sobreviver.
Eu e outros como eu, o sexo forte,
Somos fortes em quê?
Ninguém me diz?
Talvez seja no orgulho de saber
Empinar perfeitamente o nariz!
Gil Saraiva
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XII
"SER PRIMEIRO"
Ser primeiro
É ter vencido finalmente,
Não importa como ou em quê,
O quarto o quinto, o segundo e o terceiro,
Numa batalha cujo fim é ser primeiro.
Divergem as lutas pelo lugar cimeiro,
Há aquelas em que se morre antes do fim,
Quando alguém um dia vence, é verdadeiro
O sentimento de glória
Ou algo assim.
Ser primeiro-ministro, chulo ou desportista,
Compositor, astronauta ou acordeonista,
O que importa é ganhar, ganhar por fim.
Depois é tempo de morrer ou ir embora,
De perecer feliz e imortal,
Antes que vida venha, lá de fora,
Roubar o que foi nosso,
O que não teve igual.
Poucos no mundo chegam a primeiros,
Poucos sentem o sabor da glória triunfal.
De descer ou decrescer
Não há quem goste,
E há quem troque a vida pelo pedestal.
Já eu, que várias vezes fui primeiro,
Na escola, no quotidiano,
Num simples detalhe,
Nunca isso, para mim, foi derradeiro,
Pouco valorei a luta e o furor,
Afinal, eu prefiro ser primeiro
Em ser feliz e dar e ter amor.
Gil Saraiva
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XI
"O PROMETIDO"
O prometido é de vidro
Quer no Portugal dos Pequeninos,
Quer na comunidade das gravatas.
Assim, a fragilidade das promessas
É inversamente proporcional
Antes da maioridade dos humanos,
Na sua evolução para a integração social,
O que se pode considerar algo normal.
Porém, a alergia alastra
Com a proximidade dos poderes,
Sejam pequenos ou grandes,
Ficam frágeis os deveres
No mundo do posso e mando.
Os acordos, os negócios,
A palavra de quem fala,
É de vidro ou porcelana,
Nos corredores do poder.
Quebra com facilidade,
Exige cuidado extremo.
O prometer é membrana
Que perdeu flexibilidade,
Nos caminhos da cidade…
As promessas são mais como
Os animais em vias de extinção,
Que se deixaram, então,
Apanhar pelos cacos históricos
De um jovem gordo chamado progresso,
Que para poder ter sucesso,
Não cuida do prometido,
Mas apenas de si próprio,
Estilhaçando muito vidro…
Gil Saraiva