Livro de Poesia - Sintagmas da Procela e do Libambo: Tragédia em 4 Atos - Kobane - O Menino de Kobane - V/4
V
"TRAGÉDIA EM QUATRO ATOS - KOBANE"
4
"O MENINO DE KOBANE"
Uma imagem vale mais que mil palavras,
Dizem, por aí, os entendidos.
Foi assim no Vietname
Onde uma menina,
Fugindo na estrada de uma guerra vil,
Vestia napalm
Sobre a pele nua.
Kim Phuc,
Já fez cinquenta e três anos,
Mas será sempre
A Menina de Napalm…
Agora outra imagem
Invade-me o lar,
Desta vez,
Para além de uma fotografia,
Existe um filme que me mirra a existência,
Enquanto as imagens
Me turvam a mente,
O olhar e o ser,
Porque, como muitos,
Outros talvez não,
Sou um ser humano,
Que sente na alma,
No corpo e no coração
A raiva irracional
Perante algo sem explicação.
Turquia, Bodrum,
Praia de Ali Hoca Burnu,
É de lá que chegam
As imagens malditas,
Transmitidas de manhã,
Ao almoço, ao jantar,
Vezes sem conta,
Mas não mudam,
São sempre as mesmas,
cruéis e letais…
Duras, infernais…
Já nem preciso de tela
Para ver o filme
E na minha mente
A gravação não tem fim…
Entra-me na pele
Não sai mais de mim…
As ondas do mar
Rebentam na areia,
Numa ondulação suave
Onde a espuma branca
Parece lavar com carinho a praia creme,
Grão a grão,
Qual vento soprando
Em asa de ave…
E algures na margem,
Deitado no areal,
Molhado pelas ondas,
Um menino jaz,
Três anos talvez…
Rosto enterrado na areia,
Um corpo pequeno,
Inerte, de braços arrumados
Bem junto ao tronco,
T-shirt vermelha,
Calção todo azul,
Um antagonismo,
Saído do Inferno,
Que as ondas lavam
Num ritmo eterno
Sem que aquela mancha se esfume no chão.
Fazendo esquecer a podridão…
Ali jaz Alan Kurdi,
Três anos de idade,
Nascido em Kobane,
Curdo de sangue,
Vítima de guerra,
Refugiado, migrante,
Islâmico, criança,
Roubada à vida,
nascido para a morte,
Um pobre infante
Sem uma saída,
Sem estrela ou sorte…
Qual fio de seda,
De aranha foi presa, foi teia,
O menino de Kobane
Jamais. jamais fará
Castelos de areia.
Gil Saraiva