VIII
"PORTA-CHAVES"
Ter porta-chaves seguro
Onde, minhas chaves, guarde,
É saber ter um futuro
E não as perder mais tarde.
Porta-chaves quantas são
As chaves desta alma minha?
“- São muitas, mas de latão
Perdeste a de ouro que eu tinha.”
Porta-chaves, porta-chaves,
Qual é a chave do amor?
“-É a do planar das aves,
Sabeis vós voar, senhor?"
Fechar com chave de ouro
Meu percurso, meu destino,
É ser califa, se mouro,
Triunfar, cantando hino.
Meu porta-chaves ‘tá cheio
Falta uma chave, porém,
E choro porque receio
Que ela faz falta também.
No porta-chaves havia,
Quando era pequenino
A chave da alegria,
Quero agora a do destino.
O porta-chaves que tem
As chaves da minha vida,
Tem a do mal e do bem,
Da chegada e da partida.
Porta-chaves, chaves porta,
Troca-as, durante a vida,
Mas eu sei que o que importa
É nenhuma ser perdida.
Se este porta-chaves tem
A chave da felicidade,
Então deve ter também
Gazua da liberdade.
Teu porta-chaves não dês
A quem conheceste agora,
Não sabes o que ela fez
Ou se te o deita fora.
Se tiveres chave branca,
Arranja preta, amarela,
Que o porta-chaves é tranca,
Se fechares bem a janela.
Guarda as chaves e os louvores,
Para gritares igualdade,
Que um porta-chaves sem cores,
É vida sem equidade.
Se tens a chave do amor,
No porta-chaves guardada,
Lembra-te que, por favor,
Tens de a manter cuidada.
Um porta-chaves sem ter
As chaves de um alguém
É mágoa, dor e sofrer
Por amor que se não tem.
Porta-chaves chaves porta,
No seu anel prateado.
A chave da minha porta
Não serve na porta ao lado.
Gil Saraiva
IX
"NÃO POR MIM..."
Às vezes
Acho-me um ser híbrido...
Não importa se o sou
Mas o que penso...
É como se metade do que me constitui
Fosse sentir
E só a outra parte de mim
Fosse homem nato...
Sou,
Tal como o dia tem na noite
Uma outra face,
Um ser ambidestro
No que toca à mística
Representada pelo coração...
Um quase ser criança
Entre pudores que,
Nesta idade que tenho,
Já extintos deveriam estar.
Mas corre-me nas veias
O devir...
A sensação última de atingir
A plenitude das coisas
Simples e pequenas
Que permanecem fiéis à memória
De quem realmente as viveu
Com existência.
Mas para que falo eu isto?
Que importância tem?
Para que raio interessa
Um tal assunto?
Ahhhhhhh...
Importa refletir,
Sentado nas escadas alvas e frias
Do mármore que edifica e marca
Cada registo do que sou,
Tentando sempre
Ir mais longe no pensar...
O que me move?
Ou, talvez, o que me comove?
Ou, ainda, o que me demove...?
É delicioso poder concluir que,
Em cada caso,
A chave é sempre a mesma:
Sentimentos!
Vindos de dentro,
Da arca radioativa do amor
À qual chamamos
Alma...
Sentimentos,
Desempacotados,
Pelo espírito
Que nos torna humanos,
Postos a render
Para que possamos desfrutar,
A cada pegada impressa
No caminho da vida,
A realização
Do que deveríamos ser
Para que o existir tenha um propósito:
Felizes sermos!...
A demanda pela verdade
É um falso caminho se,
No final da linha,
Não encontrarmos
O amor!
É pela sensualidade dos corpos
Que a alma,
Feita espírito inventivo,
Nos mostra a excelência de uma espécie
Com milénios de existir:
O Ser Humano.
Um ser que não se reproduz apenas,
Mas que se funde em harmonia
Sempre que a longa busca,
Pela alma gémea,
Se conclui com êxito.
Ser sensual
É ser-se humano
E ter com isso a esperança
De perpetuar a espécie
Por forma a poder gritar bem alto,
Aos quatro ventos:
É amor!...
Às vezes
Acho-me um ser híbrido...
Não pelo que sou
Mas pelo que os meus olhos captam
Do mundo
A que chamamos evoluído...
Onde sensualidade
Se confunde com pornografia,
Tal como o bem
Se confunde com o mal...
Às vezes
Acho-me um ser híbrido,
Mas não por mim...
Não por mim...
Gil Saraiva