Livro de Poesia - Brumas da Memória: Quatro!
"QUATRO..."
Quatro! Naquela mesa quadrada...
Quatro: Cadeiras, almas, lembranças,
Cabeças, crânios, partidas,
Amarguras não esquecidas
Desde um tempo de crianças...
Quatro: Pessoas e pensamentos,
Vidas, homens e esperanças
Num mundo já sem mudanças...
Da raiz dos sentimentos
À terra e aos elementos...
Quatro: Apagadas existências,
Memórias,
Membros, vivências
E outras coisas que na História
Não representam glória...
Tão-somente... simplesmente...
Quatro!
De olhos postos nessa coisa
Metálica e retorcida,
Fundida pela própria Morte,
Substituta do corte
Da faca ou da catana;
Nova força soberana:
Cano, gatilho, tambor,
Com seis vagas para a bala
E quatro vagas na sala,
Bilhetes de ida sem volta
Para um mundo sem revolta,
Tão sem corpo, tão sem vida
E tão sem jogo...
Quatro: Investimentos na Sorte,
Apostas loucas na Morte...
Quatro... de olhos postos nessa arma
Metálica, enegrecida,
Apontada para a vida...
Um dedo coloca a bala…
(Silêncio cortando a sala),
E o tambor gira e revira até se imobilizar...
Arma beijando o crânio, um gatilho a disparar...
Pólvora, bala, volfrâmio, sangue intoxicando o ar...
Tão-somente... simplesmente...
É só premir o gatilho...
Seis buracos, uma bala,
No tambor daquele revólver
Que gira e se torna imóvel!...
Naquela mesa quadrada...
Três!
Corações,
Filhos ou pais,
Organismos conscientes
Das pulsações anormais,
Tão dementes,
Decadentes,
Fora dos convencionais...
Três...
De olhos focando a peça
Metálica e suicida,
Passaporte para a Morte,
Lenço ao vento, à despedida...
Outro mete a munição,
E o tambor gira e revira,
Num gozo de mil aflitos...
E Inferno, culpa, traição,
São pensamentos e gritos
Num palco feito emoção...
Um dedo já no gatilho
(Cano, metal e cabelo…)
E quatro-olhos ao vê-lo
Esperam morbidamente...
Foi um clique...
Foi suspiro...
Alívio, esperança, retiro
Tão pouco consolador...
Três!
E a arma muda de mão,
Para outra vez tocar
A cabeça de um dos outros...
E depois... ao disparar,
Um rio de sangue quente
Invade tudo e todos
E impune escorre no chão...
Tão-somente... simplesmente...
Dois!...
Naquela mesa quadrada
Dois...
Dois...
Frente a frente,
Sem ver nada...
E qualquer deles medita,
Num silêncio que irrita
A própria sala abafada...
Dois!
Mas porque dois são demais,
O jogo tem de acabar!...
E de olhos postos na arma,
Após instantes,
Momentos,
Gotas, transpiração,
Da arma... fogo
É disparo…
Tão-somente...
Simplesmente...
Um!
Um homem sobreviveu...
E olhando a fria peça,
Metálica, enegrecida,
Vê no chão os seus três filhos
Com quem jogara à roleta,
E o premir de mil gatilhos
Lhe assombram o olhar!...
Um...
Naquela mesa quadrada:
Um!...
Olhos loucos, boca assada,
Língua pastosa, gretada,
Soltando ruídos roucos...
Um,
Mete seis balas ali,
No revólver prateado,
Enegrecido de Morte,
Daqueles para quem a sorte
Não ligou...
Ou fez sentido...
Porque a pobreza isolara
Uma família tripeira,
Onde a fome se instalara
Ficando a sorte solteira...
Veio o fisco...
Muitos eram...
Nem as contas se fizeram!...
E para um puder viver,
Três teriam que ficar,
Para só um sobreviver
E a esperança alcançar!...
Quando o recurso é escasso,
E o Estado é comilão,
Há Passos em cada passo,
E há passos que não se dão...
Fecham-se Portas e Portas,
Renasce uma depressão,
E vão aparecendo mortas
Vítimas sem ganha-pão...
Deu a Troika desemprego,
Alguém falou alemão,
Retirou-se o aconchego
E o fim veio de empurrão...
Um!...
Arma na mão, na cabeça...
Cano, gatilho, tambor...
Com seis vagas para as balas,
Com seis balas nessas vagas...
E o tambor de novo gira
Até atingir o fim,
Num grito chamado ira,
Naquela noite ruim...
O tambor gira e revira
Num gozo feito vitória...
E o gatilho é mortal
Num jogo já sem sentido,
Satisfeito, sem memória!...
Naquela sala vazia
De vida, tão sem ruído...
Tão-somente... simplesmente...
Ninguém...
E naquela mesa quadrada…
Cadeiras, corpos sem vida,
Num silêncio suicida
Onde a voz já não diz nada...
Vítimas da violação
De um Estado
Sem Direitos
Dos Humanos imperfeitos,
Porque a razão tem guardado
Memorandos do eleito,
Que um dia será julgado...
E...
Naquela sala parada
Só ela fica a brilhar:
Cano, gatilho, tambor,
Balas frias de metal...
Um presente de Natal...
Naquela mesa
Quadrada...
Tão-somente... simplesmente!...
Gil Saraiva