VI
“A VIGÍLIA”
O sonho parece não ter fim…
Criando pequenas praias graciosas
O mar banha os despontares de areia,
Com flores de espuma, qual jardim,
Regado a gotas de oceano, preciosas,
Pérolas de mar na maré cheia…
De forma suave, harmoniosa,
Chegam as águas fluidas à muralha,
E a meiga ondulação vai radiosa
Penteando as pedras sem batalha,
Numa paz cúmplice que enleia
As margens por onde serpenteia…
Na piscina do hotel a queda de água
Trauteia indolente a voz da vida,
Sem sinas, tristeza ou sequer mágoa,
Apenas porque a vida lhe é querida…
Ao fundo um colorido bar molhado,
Servido por morena no sorrir garrida,
Refresca, por dentro e por fora,
O mais acalorado convidado,
Para quem as cervejinhas, canapés
Ajudam a ficar mais relaxado,
Na plácida vigília dos chalés….
Subitamente, tu entras na piscina,
E a água reflete as tuas formas
Num misto de sereia e de menina,
Que rompe status quo, rompe normas,
Apenas transmitindo o sensual
Apelo ao sexo, pelo movimento,
De um nadar suave e natural.
Tocam alarmes no meu pensamento
Há muitos predadores
À solta, a esta hora,
Que, tal como nativos batedores,
Vão dar por ti e sem demora.
Qual harpia me ergo concentrado,
Para além de meu amor, tu és família,
De pé, monto o meu posto de soldado,
Anunciando que estou de vigília.
Tu dás conta do meu ar de vigilante,
Rindo, tiras da água o corpo sedutor,
Dizendo bem alto e provocante:
“- Anda, vem, vamos fazer amor.”
Gil Saraiva
* Parte I I - Portaló ou o Sortilégio do Paraíso
Introdução
Decorria o ano de 2003, já lá vai um longo tempo, quando este livro foi pela primeira vez alinhavado. Nem todos os poemas aqui incluídos datam exatamente dessa altura exata, alguns deles tiveram origem nos primeiros anos do terceiro milénio, não porque essa mudança fosse a mais importante, nada disso, apenas porque coincidiu com o meu primeiro divórcio, depois de um casamento de 17 anos, uma filha, um filho e uma vivência ímpar e indescritível na história deste que vos escreve.
Foram anos muito felizes na minha vida, feitos de grandes vitórias, momentos amargos, lutas titânicas e episódios de paixão deveras arrebatadores. Porém, se o amor se extingue de um dos lados do casal, e passa, quase sem se dar por isso, a apelidar de rotina ou status quo, é sinal de que algo chegou ao fim, por muito que uma das partes não o considere.
A nova batalha, nos anos seguintes, gerou uma enorme revolução dentro de mim. De súbito, sem estar preparado, tinha de reaprender a viver sozinho, era necessário mudar de terra, de trabalho, de vida enfim. Tudo para conseguir sobreviver com a sanidade o mais intacta possível, sem estar sempre a recordar o que, ao tempo, não precisava mesmo de ser relembrado, para que o meu ego evitasse cair em depressão ou até em algo mais sinistro. Era necessária uma dose de otimismo, de bom humor e da procura de um novo rumo. Foi o que fiz.
Gil Saraiva
"TU E EU"
Unidos, tu e eu, por nosso amor,
Por esse doce amor que em nós nasceu,
E, muito superior ao de Romeu
Ou ao da bela dama Leonor;
Amor mais forte que o Adamastor...
E que ninguém se atreva, nem Morfeu,
Nem Júpiter, nem Vénus, nem Orfeu,
A tentar pôr fim ao seu vigor.
Tu e eu, no amor que nos juntou,
No amor que jamais nos separou,
Os deuses venceremos, pois, unidos:
Somos mais fortes do que o forte Marte,
Mais amorosos do que mil Cupidos,
Mais belos e perfeitos do que a Arte!
Gil Saraiva
"MEDO..."
Na noite os pensamentos se refletem
No fumo de um cigarro a consumir...
No desejo real de querer fugir
Dos desejos que uns olhos comprometem...
E as sombras nas paredes medo metem...
E no ar o silêncio faz-se ouvir...
E em mim sobe o desejo de sentir
O amor que os teus lábios me prometem...
Mas tenho medo que à noite me iluda...
- Quem és? Tu que me olhas ternamente ...!?
E essa sombria sombra respondeu:
- Sou uma amiga que te ofereceu ajuda.
- Mas diz-me quem és tu? (Disse insistente).
- Eu sou a Morte, o Fim, o Apogeu!
Gil Saraiva
"INCERTEZA"
Eu não fui... jamais disse... nunca eu vim,
Na cruel incerteza de um futuro,
Dizer que te acuso ou te censuro,
Pelo nosso horizonte ir ter um fim!...
Eu não fui tudo aquilo que há em mim;
Eu fui, já mesmo até, por demais duro;
Quem sabe se não fui talvez obscuro
Como uma personagem-folhetim?!...
Mas não vejo eu teus olhos celestiais
O brilho que o amor obriga a ter?
Não! Incerteza... não! Eu quero mais...
Eu quero ser amado e poder crer
Que não nos separamos, pois jamais
Podemos separados nós viver!...
Gil Saraiva
"QUATRO..."
Quatro! Naquela mesa quadrada...
Quatro: Cadeiras, almas, lembranças,
Cabeças, crânios, partidas,
Amarguras não esquecidas
Desde um tempo de crianças...
Quatro: Pessoas e pensamentos,
Vidas, homens e esperanças
Num mundo já sem mudanças...
Da raiz dos sentimentos
À terra e aos elementos...
Quatro: Apagadas existências,
Memórias,
Membros, vivências
E outras coisas que na História
Não representam glória...
Tão-somente... simplesmente...
Quatro!
De olhos postos nessa coisa
Metálica e retorcida,
Fundida pela própria Morte,
Substituta do corte
Da faca ou da catana;
Nova força soberana:
Cano, gatilho, tambor,
Com seis vagas para a bala
E quatro vagas na sala,
Bilhetes de ida sem volta
Para um mundo sem revolta,
Tão sem corpo, tão sem vida
E tão sem jogo...
Quatro: Investimentos na Sorte,
Apostas loucas na Morte...
Quatro... de olhos postos nessa arma
Metálica, enegrecida,
Apontada para a vida...
Um dedo coloca a bala…
(Silêncio cortando a sala),
E o tambor gira e revira até se imobilizar...
Arma beijando o crânio, um gatilho a disparar...
Pólvora, bala, volfrâmio, sangue intoxicando o ar...
Tão-somente... simplesmente...
É só premir o gatilho...
Seis buracos, uma bala,
No tambor daquele revólver
Que gira e se torna imóvel!...
Naquela mesa quadrada...
Três!
Corações,
Filhos ou pais,
Organismos conscientes
Das pulsações anormais,
Tão dementes,
Decadentes,
Fora dos convencionais...
Três...
De olhos focando a peça
Metálica e suicida,
Passaporte para a Morte,
Lenço ao vento, à despedida...
Outro mete a munição,
E o tambor gira e revira,
Num gozo de mil aflitos...
E Inferno, culpa, traição,
São pensamentos e gritos
Num palco feito emoção...
Um dedo já no gatilho
(Cano, metal e cabelo…)
E quatro-olhos ao vê-lo
Esperam morbidamente...
Foi um clique...
Foi suspiro...
Alívio, esperança, retiro
Tão pouco consolador...
Três!
E a arma muda de mão,
Para outra vez tocar
A cabeça de um dos outros...
E depois... ao disparar,
Um rio de sangue quente
Invade tudo e todos
E impune escorre no chão...
Tão-somente... simplesmente...
Dois!...
Naquela mesa quadrada
Dois...
Dois...
Frente a frente,
Sem ver nada...
E qualquer deles medita,
Num silêncio que irrita
A própria sala abafada...
Dois!
Mas porque dois são demais,
O jogo tem de acabar!...
E de olhos postos na arma,
Após instantes,
Momentos,
Gotas, transpiração,
Da arma... fogo
É disparo…
Tão-somente...
Simplesmente...
Um!
Um homem sobreviveu...
E olhando a fria peça,
Metálica, enegrecida,
Vê no chão os seus três filhos
Com quem jogara à roleta,
E o premir de mil gatilhos
Lhe assombram o olhar!...
Um...
Naquela mesa quadrada:
Um!...
Olhos loucos, boca assada,
Língua pastosa, gretada,
Soltando ruídos roucos...
Um,
Mete seis balas ali,
No revólver prateado,
Enegrecido de Morte,
Daqueles para quem a sorte
Não ligou...
Ou fez sentido...
Porque a pobreza isolara
Uma família tripeira,
Onde a fome se instalara
Ficando a sorte solteira...
Veio o fisco...
Muitos eram...
Nem as contas se fizeram!...
E para um puder viver,
Três teriam que ficar,
Para só um sobreviver
E a esperança alcançar!...
Quando o recurso é escasso,
E o Estado é comilão,
Há Passos em cada passo,
E há passos que não se dão...
Fecham-se Portas e Portas,
Renasce uma depressão,
E vão aparecendo mortas
Vítimas sem ganha-pão...
Deu a Troika desemprego,
Alguém falou alemão,
Retirou-se o aconchego
E o fim veio de empurrão...
Um!...
Arma na mão, na cabeça...
Cano, gatilho, tambor...
Com seis vagas para as balas,
Com seis balas nessas vagas...
E o tambor de novo gira
Até atingir o fim,
Num grito chamado ira,
Naquela noite ruim...
O tambor gira e revira
Num gozo feito vitória...
E o gatilho é mortal
Num jogo já sem sentido,
Satisfeito, sem memória!...
Naquela sala vazia
De vida, tão sem ruído...
Tão-somente... simplesmente...
Ninguém...
E naquela mesa quadrada…
Cadeiras, corpos sem vida,
Num silêncio suicida
Onde a voz já não diz nada...
Vítimas da violação
De um Estado
Sem Direitos
Dos Humanos imperfeitos,
Porque a razão tem guardado
Memorandos do eleito,
Que um dia será julgado...
E...
Naquela sala parada
Só ela fica a brilhar:
Cano, gatilho, tambor,
Balas frias de metal...
Um presente de Natal...
Naquela mesa
Quadrada...
Tão-somente... simplesmente!...
Gil Saraiva