XIII
"GOTA DE LÁGRIMA II”
Olhei pela primeira vez a gota
E ela, pelo reflexo do espelho,
Olhou para mim,
Sem dizer nada.
Curioso, pela troca de olhares,
Pelo seu nome eu indaguei com o sobrolho…
“- Lágrima, chamo-me Lágrima.”
Retorquiu serena,
Sem sorrir.
Depois olhou para mim e,
Novamente,
Voltou a falar,
Para indagar:
“- Que rosto triste,
Que cara dorida…
Diz-me o que existe
No fundo oculto dessa alma;
Que mal te fez a vida,
Para que a mágoa te invada
E te retire assim da doce calma?
Porque tens tu a paz contaminada?”
Não respondi, de pronto, admirado,
E a gota insistiu, uma vez mais,
E perguntou,
Depois de observar meu ar pasmado,
De quem no meio da dor
Jamais espera ser interrogado:
“- Explica-me a que se deve
Esse ar cansado?
Foram as minhas irmãs
Que te marcaram o rosto
Assim, baço, agastado?
Alguma coisa tenebrosa
Te corrói
Esse teu rosto macerado…
Diz-me onde te dói,
Porque tens tu esse semblante
Perdido, alheio, tão pisado?”
Dentro de mim, o coração e o ego
Partilhavam, entre si, opiniões.
Não era fácil aquela conversa
Entre um ente quase cego
E outro esgotado de boas sensações.
A verdade submersa
Teimava em se manter calada,
Escondida da voz em galeões
Que navegam em rota não traçada…
O que dizer à gota, ali,
No meu rosto, parada?
Ali, tremendo em desequilíbrio,
Sem saber se cai
Ou não faz nada.
Em meu auxílio, não sei bem de onde,
Chegou ofegante e apressada,
Como quem vem de longe,
Uma jovem e fresca coragem
Que trazia a minha voz:
“- Gota de Lágrima, que estás de passagem,
Eu choro o meu eu que já foi nós,
Sofro pela vida que um dia perdi,
A mulher da minha juventude,
Aquela… a quem jamais esqueci.
Não posso sequer ter outra atitude…
Existo, porém, sem ela nada sou,
Assim, perdido, eu ando dia-a-dia,
Não sei o que fazer, para onde vou,
Nem mesmo sei estancar minha agonia…”
Pelo reflexo do espelho uma vez mais
A Gota de Lágrima hesitou,
Por segundos, que foram demais.
Nada disse, nada fez e nem falou…
Por fim, como mensagem de murais,
Afinando a voz, que se elevou,
Escreveu no mural palavrais tais:
“- Quem te disse que o existir apenas tem
Na vida um só amor, diz-me quem foi?
Não chores, ri, espera pelo que aí vem…
Muda de atitude, acorda a valentia,
Desperta a vontade e a coragem,
Mais o humor, o sorrir e a alegria,
Altera o rumo, enfim, dessa viagem,
E sai da escuridão, regressa ao dia!”
E a Gota de Lágrima parada,
Olhou para mim de uma maneira,
Como quem abre nova estrada,
Um rumo,
Sem sombras e sem fel,
Apontando caminhos sem fronteira,
Onde o ego é aço,
E não papel,
Aonde a felicidade é verdadeira,
Porque o coração é casa,
E não hotel,
Pois que todos podemos procurar
Um novo amor para a habitar…
Depois…
A gota tremeu uma vez mais…
Sorriu, tremeu, brilhou,
Escorrendo em minha face,
Se soltou
E caiu, no chão,
No meio do pó,
Terminando o seu longo caminho…
Olhando o espelho me vi
Outra vez só,
Mas dentro de mim
Algo acordou
Agora já não estou sozinho…
Posso ter batalhas,
Lágrimas, ilusão,
Muitas falhas,
Mágoas, mesmo dor,
Mas enquanto bater
Meu coração,
Dando a meu ego hipóteses de ser,
Eu sei que talvez, possa conquistar,
De novo, um novo amor…
Um grande amor!
Gil Saraiva
XII
"EXIGE"
Tu existes num mundo longínquo,
Distante do olhar,
Do toque,
Do sentir...
Teus sonhos são meras ilusões,
Ondas lançadas
Num Atlântico sem fim,
Cuja espuma se desfaz
Nas areias vãs
Deste velho continente...
Amar,
Porém,
Exige a atracão
Entre dois polos
De idêntico sinal,
Contrariando as leis da física...
Amar
Exige o sorriso do vento
Em nossa pele,
A fusão do pensar
E do sentir,
O acender da lágrima
Em chamas de milagre
Quando a própria chama
Se extinguiu...
Gil Saraiva
XI
"BATEU..."
Bateu,
Algures no mundo,
Um coração...
Bateu de amor,
De dor,
De sofrimento...
Bateu
Milhares de vezes
Num momento...
E ninguém o ouviu,
Nem mesmo eu...
Nem mesmo eu!
Bateu,
Chamou a vida
Em alta voz,
Mas ela em despedida,
Pareceu querer ficar
A sós...
Bateu,
Gritou pelo amor
Em pulmões plenos,
De um ar sem o calor
De verões serenos...
Bateu,
Chorou saudade
Pelos cantos frios,
Mas a resposta
Se esvaziou nos rios...
Bateu um coração
Em vil tormento…
Bateu
Milhares de vezes
Num momento...
E ninguém o ouviu,
Nem mesmo eu...
Nem mesmo eu!
Gil Saraiva
X
"AMANHÃ"
A manhã passou
Pela minha pele
O radioso sorriso
Do seu Sol...
A dançar,
Atravessei as portas
Da alma...
Lá dentro
Um hino erguia-se mais alto
Com sons de dádiva
E oração...
Um hino à vida,
Uma melodia plena
De odores de amor,
Correndo entre essências,
Que germinam existências,
Num ocaso rubro de ilusões...
Rara visão esta!...
A um canto,
Para lá das portas da alma,
Um caixão coberto de flores
Parecia sozinho...
Porém, na sombra,
Uma velha senhora,
Aparentando ter morrido,
Velava abandonada
Numa cadeira feita de mágoa e dor...
Velava a morte,
Dentro do caixão,
Entre pétalas e espinhos:
Pétalas de amor;
Espinhos de tristeza...
A senhora,
A quem o tempo que passou
Chamou de eternidade,
Parecia não sair dali...
Todavia,
Olhando em redor,
Lá a fui descobrindo,
Um pouco
Em toda a parte!
Já não sofria
No canto da felicidade!...
Ria, dançando,
Ao ritmo vivo da alegria!
Noutro, o da saudade,
Chorava
Rios de suspiros
E lagos de esperança...
Mais além,
No recanto do amor,
Parecia ter dezoito anos
Tal era a orla
Repleta de Emoção...
A manhã passou
Pelos meus lábios
Num sensual beijo
De existir...
E, sem querer,
Descobri,
Nesse momento,
Porque vale a pena
Esperar por amanhã!
Gil Saraiva
IX
"O DIA INTERNACIONAL DA MULHER..."
O outro dia
Foi o Dia Internacional da Mulher,
Mas...?
Então... e hoje...?
E os outros trezentos
E sessenta e quatro dias
De quem são?
Um, eu sei...
Onde há peru ou leitão...
É Natal,
Dia do Rei,
Do Papa ou do sacristão...
Outro ainda eu conheço,
É terça de Carnaval,
Tem também um da Criança
E outro dos Namorados...
Mas que nos importa afinal
Esses dias de lembrança,
Seja dia de Finados
Ou dum longo tempo Pascal?
E o dia do ladrão?
Da alegria? Da velha?
Da fome ou da tradição...?
Ninguém me diz quando são?
O Dia Internacional da Mulher...
Mas que coisa que inventaram,
Um dia que aproveitaram
Para enganar… quem quiser...
Exploram e chamam fraco
Ao sexo feminino...
Esse bebé é menino?
Ou… a menina está bem?
Não!
Eles não enganam ninguém!
É medo... Eu sei!
É medo que fique forte...
Dão-lhe um dia, fazem corte,
E através dele criam lei...
Mas que grande hipocrisia,
Dos senhores da valentia...
O outro dia
Foi o Dia Internacional da Mulher.
Mas...? Então... e hoje...?
E os outros trezentos
E sessenta e quatro dias de quem são?
São daqueles a quem
Um seio materno
Deu vigor, amor, dedicação...
São daqueles por quem
Esse ser terno
Sentiu dor, fome,
Raiva, humilhação...
Nos outros dias do ano,
Nos dias do dia-a-dia,
Eu vejo a panela ao lume,
A casa passada a pano,
A rotina do costume:
Roupa cosida, lavada,
Comida bem preparada,
Casa pronta,
Chão esfregado,
E o soalho encerado...
Mais o trabalho lá fora,
Pago por meio ordenado,
Se quiser ou vai embora...
Nos outros dias do ano
Sexo fraco é para manter,
Assim manda o soberano,
Porque assim é que é viver...
Ter que ser mãe
E ser escrava,
Fazer tudo e calar só.
Andar descalça na lava
E depois limpar o pó...
E não esquecer o marido,
Pois o pobre homem,
Coitado,
Deve estar aborrecido,
Se deve sentir cansado,
Porque cansa
Ser servido
E dar ordens bem sentado...
O outro dia foi o Dia Internacional da Mulher…
Mas...? Então... e hoje...?
E os outros trezentos
E sessenta e quatro dias
De quem são?
Não importa!
Mulheres do mundo inteiro,
Digam: Não!
No Paquistão,
Ou no mais simples outeiro...
Desse dia da mulher
Façam um dia de luta!
Porque há de a mulher
Ser puta e o homem
Garanhão?
Nesse dia da mulher
Façam vigílias e luto
Contra o Patriarca bruto,
Neste mundo
De tabus e repressões...
Digam bem alto,
Gritando:
"- Chega de humilhações!"
Que esse dia da mulher
Seja apenas mais um dia
Para as que já conquistaram
O que mundo lhes devia...
Porém,
Para a maioria:
É o dia da revolta,
Não de festa,
Mas de garra,
De uma garra
Que se solta
Para acabar a fanfarra,
Para impor a igualdade,
Para conquistar:
Liberdade!
O outro dia
Foi o Dia Internacional da Mulher...
Gil Saraiva
VIII
"OS OLHOS DA TESTEMUNHA"
Ela viu!
Ela viu a pedra dura
Na mão
Do criminoso...
O movimento fatídico
Do braço...
A explosão de sangue quente
Na fronte aberta
De uma vítima...
Ela viu...
No sítio incerto,
Na hora errada,
O facto absurdo...
E os olhos
Da testemunha
Brilharam parados...
Ela viu
Que ele a viu a ela!...
Gil Saraiva
VII
"EMBRIÃO"
"- Já sinto o nosso menino..."
Diz a mãe,
Com lágrimas nos olhos
E flores no coração...
"- Vem, põe aqui a mão,
Também o sentes?"
E o pai envergonhado
Diz que não...
O embrião corre pró milagre,
Mais alguns meses
E irá nascer...
E os pais perguntam:
"- Quem será ele um dia?"
"- Que missão terá ele
Neste mundo?"
"- O que fará
O nosso querido filho...?"
"- Que nome lhe daremos?"
"- Adolfo...?"
"- Lindo..."
Diz o pai...
"- Adolfo... Adolfo Hitler!"
Até o mal,
Um dia, teve
De nascer...
E quantas vezes
Ele nasce
Por amor?
O que faríamos nós
Se, previamente,
Conseguíssemos saber?...
Gil Saraiva
VI
"TODOS CONHECEM A TERRA...”
Todos conhecem a Terra
Que vem dos confins do Tempo,
Vem de um talvez contratempo,
É testemunha afinal;
Vem de tochas e de fráguas,
Tem o timbre
Dos cantores,
Tédios,
Tranquilos, vapores
No transparente das águas…
Tem
Temporal de bágoas
Em temores de rostos mil,
Tem tempestade viril
Na transcendência do Ser...
Todos conhecem a Terra,
Tradição,
Trigo,
Ternura,
Um terreno de bravura
A transbordar
Tatuagens,
Qual talismã de miragens
De uma tarde ainda futura...
Todos conhecem a Terra,
Texto, terreiro, trabalho,
Trato, taxa ou espantalho,
Trégua em tratado tardio...
Taciturna por um fio;
Território, telegrama,
Transitório trunfo, trama
A transbordar de tensão...
Tabuleiro de tornado,
Turno de turma, pecado,
O tardar da televisão
Que é sinal de tempestade;
Tomar tarefa, torpedo,
Trincheira cheia de medo…
Trânsito,
Tiro de verdade,
Telemóvel e brinquedo;
Transtornada tentação,
Terramoto,
Temperatura,
Tiquetaque de rotura…
Tromba-d'água, tubarão;
Talhar de teima, temer,
Tecer truque tenebroso,
Testemunho que odioso
Nos faz tombar e torcer...
Todos conhecem a Terra,
Que é trampolim da comédia
E que num truque se encerra,
De transpirar sem recibo
Em tirania e tragédia
Na traição de uma tribo...
Todos conhecem a Terra,
Telefone de trovão
Que tosse
Como um tufão
Tóxicos traumas da guerra,
Que não para, não tem termo,
Não tem fim, é um tormento...
Tantas toupeiras num ermo,
Quais tanques em movimento,
Três, treze e quantas mais
Vão cavar túmulos fatais...?
Todos conhecem a Terra,
Onde até o topo erra,
Que é como um túnel, tesouro,
Termómetro
E tenebroso
Tráfico feito sem ouro,
Por um bandido tinhoso,
Que trafica à tonelada,
Sem tática ter traçada...
Tráfego,
Tranca, tarado,
Testículo abandonado
Por um traidor que merecia
Não um trono,
Mas torrado,
Ser em turbina de azia,
Sem eles morrer castrado...
Todos conhecem a Terra,
Técnica,
Troféu total,
Tímpano,
Trauma, torneio,
Transporte e tribunal,
Tanto trilho,
Transfusão,
Tentáculo de traiçoeiro,
Travessia terminal
Da trincheira de um tumor...
Troco,
Turista, terror,
Tratamento pra tirar
Tudo o que houver que depor,
Sem a tropa a tripular...
Todos conhecem a Terra...
E se houver uma Terceira
Guerra de trevas final,
Começada à terça-feira
Por um taliban fatal...?
Temível, totalitário,
Louco querendo trucidar
Um trémulo mundo ao contrário
Que não sabe ripostar...
Da tristeza à transfusão,
Com um terço em cada mão,
Vamos todos esperar
Que em bem possa terminar
Esta luta dita santa
Por quem tem cérebro de anta,
Que as torres, fez desabar!...
Todos conhecem a Terra...
Se tramou a Economia
Capitalismo tremeu,
Tradução que tardaria
A trazer luz neste breu...
Direitos Humanos? Tampão!
Tratamento em turbilhão...
Troika trocos troca, tintas
Pintam tapumes tapando
Com cores de Tirania
Tratados tornados fintas...
Lá os Direitos Humanos
De gregos ou portugueses
Tomados pelos germanos
Aos Estados tão totós
Triturados como em mós...
Mas nada disto adianta,
Todos conhecem a Terra:
Havendo homens no mundo,
Num segundo travar guerra
É tara, filosofia,
Sonho tornado magia
Que vem dos confins do Tempo,
Vem de um talvez contratempo…
Testemunho que entre mil
Nos faz tombar
E torcer
Em tempestade viril
Na transcendência do Ser...
Gil Saraiva
V
"A POESIA DO TÊ"
T: de Terra, de Território,
De Tempo, de Ternura, de Texto,
De Timbre, de Terreiro,
De Trabalho, de Tédio,
De Tranquilo, de Transcendente,
De Trato, de Turno, de Turma...
De Tarde, de Tardio, de Tardar,
De Tradição, de Trégua, de Trigo,
De Trânsito, de Transitório,
De Tratado, de Torneio, de Telefone,
De Telegrama, de Telemóvel,
De Televisão, de Taciturno, de Taxa...
De Talvez, de Tabuleiro,
De Tatuagem, de Transparente,
De Tentação, de Tráfego,
De Temperatura, de Termómetro,
De Temporal, de Trompa, de Tempestade,
De Tubarão, de Terremoto, de Temor...
De Trovão, de Toupeira, de Tornado,
De Tufão, de Teima, de Temer,
De Tragédia, de Treze, de Trunfo,
De Terceira, de Twin Towers, de Topo,
De Túnel, de Tesouro, de Talismã,
De Trade, de Tonelada, de Trampolim...
De Testemunha, de Torpedo, de Tranca,
De Talho, de Tímpano, de Truque,
De Transbordar, de Tanque, de Tiro,
De Tocha, de Torrado, de Tomar,
De Tarefa, de Tombo, de Tensão,
De Tecer, de Técnica, de Torcer...
De Transpirar, de Tráfico, de Tática,
De Testículos, de Tique-Taque,
De Turbina, de Transporte, de Travessia,
De Tirar, de Trincheira, de Tumor,
De Trilho, de Tripular, de Taliban,
De Tribo, de Trono, de Trama, de Três...
De Tirania, de Totalitário, de Tarado,
De Traidor, de Traiçoeiro, de Temível,
De Tenebroso, de Tentáculo, de Terror,
De Terrorista, de Trofeu, de Totalitário,
De Tóxico, de Transtornado, de Tanto,
De Todo, de Total, de Termo...
De Terminal, de Tormento, de Trucidar,
De Terça-Feira, de Trevas, de Tumulto,
De Turista, de Tossir, de Tristeza,
De Transfusão, de Trauma, de Tratamento,
De Trémulo, de Túmulo, de Terço, de Tropa,
De Troco, de Tribunal, de Travar e de Tudo!...
Gil Saraiva
IV
"VERGONHA"
No eco dos sentidos
Mais profundos
Procuro com fervor
Uma outra idade...
E lembro os velhos tempos
Com saudade...
E, outra vez,
Vivo-os, por segundos...
Mas se meus anos
Foram tão fecundos,
E já alguns eu tenho
Em minha idade,
Noventa devo ter eu
De ansiedade
Pois tenho o Ser e a Alma
Moribundos,
Perdidos entre sonhos,
Vagabundos...
Meu eco,
Do sofrer,
Viveu imune
Até dele alguém
Fazer denúncia...
Não mais poderá
Ficar impune...
E a vida irá mudar
Se houver renúncia...
Meu ego
Esqueceu como se sonha...
Ficou dentro de mim,
Por ter vergonha!...
Gil Saraiva