XIX
"O JOVEM QUE JÁ NÃO SOU”
Um jovem…
Um jovem escritor chamado eu.
- E escreve de pequenino?
Pergunta Baco a Morfeu.
Dirão os deuses do Olimpo,
Que escrever é arte nobre
E isso de eu ser escritor tem muito que se lhe diga,
E os doutos homens das letras,
Alimentam tal intriga,
Com desprezo pelo pequeno, que, entretanto, envelheceu,
Que pouco sabe da arte,
Que pouco ou nada aprendeu,
Que tenta escrever umas tretas,
Sem ligar aos doutos homens das letras.
Porque o jovem não se acanha, a idade é-lhe estranha,
O que vale é evidente, que a alma não tem idade,
Mesmo aos cem… é mocidade.
Escreve o que sente e não sente,
Só à caneta é fiel, que esse ser é… tinta ardente,
Numa folha, no papel, no pensamento da vida,
Nesta quimera esquecida, chamada civilização!
Não há só filosofia, crença ou religião,
Há também a fantasia, do jovem, velho, criança,
Uma semente de azia, num mundo sempre em mudança.
Caneta e tinta, papel.
Resignado, suicida,
O jovem velho bem sente que… vai-se acabando a vida…
Escreve uma folha, outra folha,
Poeta ardente, ciente, com tinta, compreensão.
O poeta escreve o fel na folha ardente da vida,
Resignado, suicida, caneta, tinta, papel,
Grava o que sente na ferida!
Não sente os tempos vividos,
Sente o eco dos sentidos!
Gil Saraiva
II
"ELA..."
Ela
Não podia estar ali...
Talvez...
Nos confins do pensamento,
Longe de tudo...
Não de todos!...
Um rosto jovem no sorrir...
Um rosto,
Com raios de Sol
Caindo nos ombros,
Em cabelos de um ouro
Que brilha no escuro...
O azul do mar
Repousando nas pálpebras,
De uns olhos castanhos
Que brilham também...
Um doce poente
Poisado nos lábios,
De uma boca que arde
E cheira a pecado...
Um luar de prata
Em seu meigo rosto,
De uma Lua Cheia
Que ilumina a serra...
Os traços de Vénus
Moldados num corpo,
Que Gaia quis tão fértil
Como sensual...
O entardecer
Descendo no ventre,
Qual crepúsculo
Anunciando a plenitude...
O sabor a sal
Colando-lhe as coxas,
Húmidas de ansiedade,
De ante prazer...
O toque da seda
Envolvendo os seios,
Tentando esconder
A derme perfeita...
O amor perdido
Em seu terno olhar,
Que busca, sedento,
Outro olhar igual...
E um ar de oásis
Cobrindo-lhe a pele,
Qual neblina ténue
Desejando Sol...
Ela...
Não podia estar ali...
Talvez...
Perto de alguém,
Imaginário ninguém,
A quem espera,
Um dia,
Vir a encontrar!...
Ela
Não podia estar ali...!
Não!...
Não existe tal paisagem,
Pois as quimeras
Nunca são reais!
Mas...
Se por força
De acasos impensáveis,
A paisagem
Não for mera miragem...
Se o ocaso
Realmente for poente
Que chega ante meus olhos
Suspensos na exceção,
Então... então...
Então tudo eu dou
Pela paisagem!...
O que sou,
O que fui
E o que serei,
O que tenho
E o que possa vir a ter...
Tudo!...
Porque tudo é pouco
Se puder na paisagem
Meu ser eu colocar...
Num canto,
Ali...
Mas enquadrado...
Ela
Não podia estar ali...
Gil Saraiva
"CANSADA"
Cansada de viver ali sozinha,
Com tanta gente sempre à sua volta;
Mas se sentindo presa quando à solta
Nesse grito de raiva se continha...
Cansada de calar a ladainha,
Daqueles entre quem se sente envolta,
Ela implora o momento da revolta,
Que jamais chega e nunca se adivinha...
Tão cansada de mágoas, deceções,
Desgostos e tristezas: podridões...
Tão mortalmente farta, dolorida,
Ela que já foi bela, jovem, nova,
Tão descansada está em fria cova
Que não me lembro já se teve vida!...
Gil Saraiva