Livro de Poesia - Plectros de um Egrégio Tetro Umbrático: Lago Negro - IV
IV
"LAGO NEGRO"
Um lago negro
Em cristalino olhar
Reflete uma cândida ternura
Na busca de outros olhos
Que ao brilhar
Iluminam o lago, por ventura,
Por desejo, sonho ou ilusão,
Trazendo esperança, vida e emoção…
Hoje, agora e sempre,
No quotidiano dia-a-dia,
O lago de antracite faz sentir
Que o pôr-do-sol
Afaga as sombras
Mas não a saudade,
Que esta nunca teve bruma ou escuridão.
A pouca distância, escuta-se um vento,
Que vem vindo, soprando em assobio agreste
Uma melodia que fala de amor,
Porque o amor nunca foi suave…
Sopra da praia, deserta na pandemia
Por decreto do Estado de Emergência,
Acompanhando o grito do mar
Que berra uma agonia
À areia da beira-mar,
Pejada de turistas de plástico e alumínio,
Que a maré trouxe clandestinamente à costa
Sem defesas ou decretos que lhe valham.
A natureza agita-se revoltada,
Talvez porque a vida não tem partos sem dor,
Mas além, onde o lago negro vê
Chegar de mansinho o crepúsculo,
Que antecede a escuridão,
As formas tornam-se confusas,
E não há diafragma
Que ajude à nitidez dos registos e das formas.
Afinal, nesta guerra entre luz e breu,
Só uma nova aurora,
Num amanhã ainda não lembrado,
Pode trazer ao espaço o regresso das imagens,
Porque a esperança
Precisa de luz,
Tal como o lago negro,
Para poder brilhar.
Sinto que o lago negro
Busca um espelho irmão,
Um olhar procurando outro olhar que desconhece,
Uma procura insana que acontece,
Para que o lago brilhe na sua escuridão.
De súbito, um sorriso perdido,
Adormecido,
Por entre os cabelos da quase noite,
Naquele iniciar de primavera,
Já com uma hora a mais de novo horário,
Parece surgir de uma janela
Onde alegre chilreia um canário.
Alguém aparenta procurar dar a mão
A uma outra que seja solidária,
Na esperança de que a noite que chega
Não lhe diga, sem porquês, apenas não,
Contrariando a pedra calcária
Da calçada portuguesa,
Que se mostra bem mais revolucionária,
Naquele jardim onde brilha o lago negro.
Os cabelos da noite invadem a paisagem,
Apontando mistérios por entre a neblina,
Ninguém vê o olhar de uma mulher, menina,
Procurando o brilhar do negro lago,
Como quem busca conforto ou afago,
Com quem possa por fim se descobrir
No sorriso de um olhar que há de vir…
Gil Saraiva