I
“ETERNA ROCHA”
A flor do jardim olhou para mim...
Eu,
Um Vagabundo Dos Limbos,
Da net;
Senhor da Bruma,
Da noite;
Haragano, O Etéreo...
Lenda urbana de quem nunca
Ninguém ouviu falar...
Passava perto,
A caminho da vida,
E a flor do jardim olhou para mim...
As pétalas penteadas pela brisa,
O tronco hirto e firme pela certeza,
As folhas como braços abertos
Em minha direção...
"- É contigo que eu quero partilhar
A minha essência...
Aqui,
Numa cama de pétalas,
Sob um céu de luar...
Vem!
Terás contigo o perfume da noite,
O sorriso das estrelas,
A plácida tranquilidade da Serra
Perante a eterna vigília da Lua...
Vem!
Ocupa o meu jardim,
Sê meu Senhor,
O Senhor da Serra da Lua,
Dono do meu amar,
Do meu amor…
Vem.
Sou toda tua..."
Olhei a flor do jardim...
Ainda suspirava na ânsia da resposta...
Olhei de novo a flor,
Ali,
Ao sol exposta,
Branca e pura como a pura neve,
Silvestre e livre como a liberdade,
Doce e bela como a natureza...
Sorri...
Oh como eu sorri...
Sorri de orgulho daquele olhar florido
Em mim poisado,
De vaidade infinita por me sentir
O desejo profundo de uma flor
Que de mim espera um devir…
E respondi:
"- Flor,
Eu sou um Vagabundo Dos Limbos,
Da net;
Senhor da Bruma,
Da noite;
Haragano, O Etéreo,
Lenda urbana de quem nunca
Ninguém ouviu falar,
Buscava perdido o caminho da vida,
Em confusão, e, afinal
Tudo é tão mais simples...
Serei teu e serás minha
Se o orvalho da madrugada
Eu puder ser em tua sede,
Alimentando-te a raiz e o existir...
Serei, enfim,
O solo onde te firmas,
Servo da terra onde és jardim...
Não te quero eu perder,
Dá-me o teu etéreo existir
Na eternidade,
Transmuta-me na Serra da Lua...
Que a minha voz seja agora
A do vento que sopra de Ocidente,
A saliva
O mar
Que desagua no meu corpo
E meus passos as pegadas do futuro
Que um qualquer dinossauro
Marcou na eterna rocha..."
Gil Saraiva
"Haragano, O Etéreo, um Senhor da Bruma"
(A HISTÓRIA...)
Ao princípio
Senti-me como que um desaparecido...
Não em combate,
Como certos militares em terra estranha...
Não no triângulo das Bermudas,
Como reza a história de muitos navios
Perdidos na Bruma...
Não em pleno ar,
Como se fosse um avião
Engolido pela própria atmosfera
Algures entre nuvem e bruma...
Não! Nada disso! Desaparecido de mim...
Sem identidade... Sem existência...
Sem referências... Sem sentido de viver...
Sem imagens claras, perdido na bruma...
Imagine-se a montanha!
Grande! Monstruosamente grande!
Gigante mesmo
Elevando-se na planície!
Isso fui eu,
O eu Narciso antes da primeira queda,
Antes do começo das erosões...
Seguidas, repetidamente insistentes,
Continuadas no tempo e na vida...
Isso fui eu,
Antes dos abalos, dos sismos,
Dos terramotos sem fim
Num mundo feito de sobrevivência
Mais que de essência!
Isso fui eu, antes da bruma...
E a montanha foi perdendo forma,
Volume, dimensão...
Até se confundir na planície amorfa
Da multidão sem rosto,
Sem esperança,
Sem dignidade
E sem amor próprio...
Aparentemente,
Eu tinha desaparecido,
Sem que um vestígio de sobrevivência
Servisse de pista
Para uma busca por mim mesmo...
Imagine-se um desastre
Num qualquer ponto isolado do globo,
Onde um hipotético sortudo
Salvo da morte pelo acaso,
Irremediavelmente ferido,
Acabasse por ficar
Virtualmente irreconhecível
Perante a exposição ao tempo
E às depredações dos animais
E da própria natureza...
Isso era eu!
Perdido de mim e dos meus...
Desaparecido do mapa
Dos humanos com voz própria!
Ao princípio
Foi assim que me senti.
Depois, dei conta que vagueava
Sem destino ou rota certa...
Algures entre nenhures,
Um ser disforme,
Parco de alma e existir...
Durante momentos que pareceram anos,
Durante anos que não tiveram momentos,
Apenas procurei, não sei o quê...
Não sei porquê...
E não sei como...
Quando finalmente dei por mim,
Não passava de um vagabundo,
Perdido de si em busca do ser...
Era como se os locais,
Por onde a minha sombra
Me garantia a existência,
Fossem nuvens sem forma,
Estradas sem referências,
Caminhos sem lei...
Brumas sem paisagens...
Apenas limbos...
Apenas Éter...
Apenas Bruma...
Às vezes sentia
Que estava numa grande teia,
Cheia de predadores,
Plena de vítimas,
Ávida de sentidos e sentimentos...
Uma teia universal que me envolvia
Como uma rede escura e semieléctrica...
Descobri, aos poucos,
Que tinha sido absorvido pela internet
E que me tornara
Num Vagabundo Dos Limbos,
Em Haragano, O Etéreo,
No Senhor da Bruma,
Numa Lenda Urbana
De quem nunca ninguém ouviu falar,
Num Senhor dos Tempos
Sem tempo para si mesmo...
Um Sir, à inglesa, polido na forma,
Vazio no íntimo de si próprio,
Repleto de vontade e de reconstrução...
Um Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo,
Senhor da Bruma,
Em busca da identidade esquecida
Num passado sem memória...
Até que renasci,
Gritando aos cinco ventos
A minha alvorada...
Vento de ser,
Vento de existir,
Vento de viver,
Vento de sentir,
Vento de amar...
De novo era gente,
Uma criatura nova,
Não na idade que essa
Não deixa Cronos em cuidados,
Mas na vida.
Eu era...
Eu sou, esse Sir,
O Vagabundo Dos Limbos...
Haragano, O Etéreo...
Senhor da Bruma...
Pela rede universal transmitindo
A história de uma alma
Que aos poucos fui reconstruindo,
Sem vaidade, sem orgulho,
Sem a certeza sequer de ser ouvido...
Porém... com a esperança
De que ao falar globalmente
Para este universo imenso,
Possa um dia agir localmente
Na alma de um ser que como eu
Se sinta desaparecido a dada altura...
Assino, como me conhecem:
Sir, Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo...
Senhor da Bruma...
Gil Saraiva