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“PORTO E PORTAL”
Morro de S. Paulo, Tinharé,
Cheira a Brasil e a saudade,
Aroma mais puro que o café,
Um cheiro profundo
A felicidade…
Descer na paisagem,
Até tocar o mar,
Por rampa de miragem
Singular,
Onde carros de mão,
De malas cheios,
Dizem ser táxis,
Sobem de escalão,
Movidos a braços
Num calor de Verão…
E atracado bem perto a um portal
Que com coragem a tudo resiste,
Feito de séculos, pedras e de cal,
De obra humana firme que persiste,
Qual testemunha histórica da vila,
Eis que se pode vislumbrar o porto…
Subir, descer, andar, pareceu desporto,
Recebem-se os turistas de mochila
Pois no ponto de entrada e de saída,
Neste recanto onde o amor cintila,
A paisagem parece desmedida…
De um lado, o morro da saudade
Ou de São Paulo, bem colorido,
A onde o sonho vira realidade,
Do outro, o portal, o porto, o mar
E lá no fim, quase que esquecido,
Uns rasgos traços tentam desenhar
A terra ao fundo, o continente,
As margens da baía, como espuma,
Desvanecida assim por entre a bruma,
Tão longe desta ilha, desta gente….
Nós viemos lá da outra banda,
Transferidos por um velho bimotor,
Que, pelos ares, cumpriu sua demanda
De nos trazer à terra do amor.
Do aeródromo ao morro, meia hora,
Por caminhos de areia, cá chegamos…
E quando na base do morro estacionamos,
Vieram logo os táxis, sem demora.
Carrinhos de mão, daqueles das obras,
Com moleques, tisnados pelo Sol,
Pareciam sapos, lagartos, mesmo cobras,
Imitando na subida dura, de andar mole,
O passo da lesma, lagarta ou caracol.
Nos carrinhos… as malas dos turistas,
Enquanto estes se perdiam com as vistas.
Já nós os dois, amor, de mãos entrelaçadas,
Namorámos morro a cima e na descida
Vendo botecos, lojinhas e esplanadas,
Pensámos estar vivendo uma outra vida,
No paraíso perdido da paixão,
Lembras-te querida?
Até de ti,
Armada em atrevida,
Levei um apalpão,
Sem saber ler,
Nem achar que o posso descrever…
Por fim, porto e portal,
Num largo, feito movimento,
Onde amar parece natural.
Ali o amor tem cor,
sabor e cheiro,
Porque ali
O romance é hospedeiro,
De mim, de ti,
De nós,
Em imprevistas
Emoções,
Impulsos e ecos egoístas,
Do bater dos corações apaixonados
Ao qual nos rendemos,
Num torpor,
Que por amor,
Nos faz do verbo amar escravizados…
Gil Saraiva
* Parte I - Paisagens ou o Sortilégio da Paixão
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"TIAN AN MEN"
(AS VINDIMAS DE JUNHO)
Cantam as vindimas os Podadores,
Cantam na Praça de Tian An Men...
Vindimas de junho
Onde uvas, aos cachos,
Aguardam a poda...
E há quem as ouça... parecem gritar:
"- Queremos Liberdade! Democracia...
E embora com medo queremos Liberdade!
Não vamos fugir,
Somos milhares pedindo uma voz,
E apenas uma,
Hoje e aqui em Tian An Men,
No lar da Paz Celestial...
Tien An Men, Tian An Men,
Pedimos apenas o que é natural!..."
Fazem chacinas os Caçadores,
Caçam na Praça de Tian An Men...
Chacinas de junho
De foice e martelo, de gás e de bala,
De bomba e canhão, de tanques estanques,
Ceifam-se estudantes...
Morrem às dezenas, centenas, milhares,
Qual carne picada triturada a aço;
Não sobra pedaço...
No lagar de horrores o mosto já fede!...
E choram as vítimas dos Podadores
Choram na Praça de Tian An Men...
Vítimas de Junho...
Só os mortos cantam, num descanso ameno,
Na Praça da Paz Celestial...
Vítimas do medo, que o Poder tremeu,
Vítimas tão cedo de quem não cedeu...
Mortos, mais mortos e outros ainda
Que em Tian An Men
Pra sempre ficaram...
E só porque ousaram pedir Liberdade
Pra poder falar e ouvir e ler,
E poder escolher
Entre concordar e não concordar...
E contam as vítimas os Ditadores
Contam na Praça de Tian An Men
Um, dois, três, cem, mil, e mais e mais...
Aumentam os corpos ceifados a esmo:
Mulheres, homens, velhos, crianças,
Dois mil, três mil...
Vale mais não somar,
Esquecer os totais...
Que em Tian An Men,
A praça da Paz Celestial,
Nasceu um Inferno feito por mil Dantes...
O Verão foi Inverno... morreram estudantes...
E cantam os Anjos num coro de dor
Cantam as Almas de Tian An Men...
E a China já chora
O chão decorado de ossos e tripas,
De músculos rasgados,
Banhados no sangue de um mar de mártires:
Um novo Austerlitz!...
No tocar dos extremos
O sangue é fusão...
Cantam as vítimas os Podadores
Tomara que só em Tian An Men...
Tomara também que no Luso Ocidente,
Vindimas não hajam
Nos meses errados...
Cantam as vítimas os Podadores
Tomara que só em Tian An Men...
Vítimas de Junho...
Pisaram-se as uvas e embora verdes
Um mosto vermelho encheu o lagar
- Tian An Men... Tian An Men...
Os bagos esmagados parecem falar...
E cantam as vítimas os Podadores
Tomara que seja o Canto dos Cisnes...
Gil Saraiva
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"PALAVRAS"
Pensemos
Em tudo o que nos constitui,
Em qualquer universo
De existir...
Aqui!
Neste mundo em que vivemos,
Enquanto seres
Que se desenvolvem
Pela comunicação das partes
Com o todo,
Na nossa realidade,
De humanos
Que se movem
Pelas relações entre eles
E o próprio meio...
Aqui,
Onde aquilo que mais depressa
Se devora, consome
Ou se assimila e que,
Por outro lado,
Mais produz, cria
Ou desenvolve é,
Com inequívoca certeza,
A Palavra.
Esse conjunto de letras certas,
Absolutas ou relativizadas,
E não um qualquer paleio
Ou palavreado em abstrato...
Não se trata
De uma simples conversa
Sem sentido
Ou mera circunstância...
Não!
Importa sim o ato criativo
Que nos ajuda a pensar e progredir...
Importa realmente a expressão última
Que nos torna comunicativos,
Únicos e humanos:
A Palavra.
Em suma:
Nada é tão apelativo
Como uma boa meia dúzia
De doces palavras...
Ditas no momento correto,
Na altura exata,
À pessoa certa!
É imenso o valor dessa
Palavra!...
Tudo se constrói pela linguagem!
Tudo se pensa pela soma
De palavras
Em contínuo turbilhão...
Tudo se vive e vibra
Nas palavras...
Caem governos
Por uma palavra
A mais ou a menos,
Sobem e descem ações,
Vivem dela os Mercados,
Vive a crise, a inflação.
Até a Lei e a ordem
Da palavra fazem força.
Descreve a queda do Euro,
O confisco dos mais pobres
E o fausto
Dos magnatas...
Ficção ou realidade;
Sonho ou existir;
Ser ou Não Ser;
Liberdade ou tirania;
Meu Deus...
Palavras!
A tentação
Última dos poetas:
Sobreviver
Depois do Ser!
E renascer nas páginas
Que deixam
Para a eternidade
Somatórios de letras,
Que lhes darão vida,
Após a morte:
Palavras!
Palavras
Que se escrevem a sangue
Ou no vermelho dos cravos,
Fáceis de dizer,
difíceis de cumprir:
Paz, Liberdade, Solidariedade,
Saúde, Vida...
Palavras,
Matamos por elas,
Sofremos por elas,
Morremos por elas,
Mas também nascemos, vivemos,
Sentimos, rimos e festejamos
Por elas.
Que se calem jamais essas palavras.
Gil Saraiva