VII
"LIBERDADE DE SER LIVRE EM LIBERDADE”
O contexto das coisas molda a liberdade…
No coreto do Jardim da Parada eu vi uns
Olhos negros, um nariz arrebitado,
De saia gaiata, camisa de bolinhas,
Com cabelo negro, liso à Joana d’Arc,
Um riso atrevido, sensual, perdido,
E uns gestos felinos, quase provocantes.
Não liguei muito e depois pensei...
E se o meu cérebro me contasse
O que vai no coração dos outros? Dir-me-ia
Que o puto da bicicleta estava apaixonado,
Todavia, e se o sentimento pela petiza
Viesse do quarentão sentado na mota?
Seria um caso de arrepiante pedofilia
Pois a cachopa não teria mais que quinze anos.
Na verdade, dependendo da realidade,
O contexto das coisas muda a liberdade!
Liberdade! Viva a liberdade!
Viva a sociedade de consumo,
Viva o trabalho,
Viva o ministro que chegar primeiro.
Viva a vida, viva a morte,
Que o uso da labuta do operário
Vive nos bolsos, a quem a sorte
Deu o nome pomposo de: Patrão.
És livre de estudar,
Mas tens dinheiro?
Livre de trabalhar, se houver labor,
Até és livre de ter um teto ou um caixão.
E ainda és livre de a Portugal chamares prisão,
Em liberdade, talvez, por confusão.
Guardam o teu transpirado capital
Aqueles para quem suaste
Tão livre do repouso que mereceste.
Liberdade! Viva a liberdade!
Virados para a Lua,
A hiena e o abutre,
A pantera, o urso e o leão,
São quem primeiro tem direito à refeição
De outros animais que são repasto,
Tenrinho, dos donos do sertão.
Liberdade, solidariedade e, porque não,
Fraternidade, para a irmandade
Dos que nasceram do ouro ou do falcão,
Do nobre comando imposto por dentes
De hiena, de tigre, orca ou tubarão.
Liberdade! Viva a Liberdade!
Dos que germinaram no lado oculto,
Em escuridão.
Que sobreviva o pobre,
O emigrante, o imigrante,
O esfarrapado e o pedinte,
O desgraçado, o cornudo, o elefante,
O sacrificado e o ouvinte,
Todos aqueles a quem o azar
Entrou pela porta, sem bater
E que apenas vieram
Do lado errado da liberdade.
Liberdade! Viva a liberdade!
Vivam os que veneram o homem pequeno
Cara franzina, de fuinha, amostra de bigode,
Cabelo preto lambido por cabra, vaca ou bode,
Porque a estupidez humana é misteriosa.
Viva o direito de se poder dizer não!
É fácil tudo negar, como resposta,
Como é fácil olhar e nada ver,
Pensar como é bom algo acontecer,
Não mexer uma palha e cantar glória,
Recusando os atos da vitória
Com medo de nunca a obter.
A ignorância, a negação e o fanatismo
São as sementes podres da sociedade.
Liberdade! Viva a liberdade!
Gil Saraiva
II
"À PENA LIVRE"
Escrevo,
Sem pensar,
À pena livre,
Porque é bom viver em liberdade,
Porque se alguém,
Um dia,
Numa gaiola prender uma andorinha,
Não conseguirá, contudo,
Reter a primavera!
Escrevo,
Escrevo sem pensar,
À pena livre,
Porém, se alguém as minhas letras,
Um dia, quiser ler,
Num livro cujo autor tenha de mim o nome,
Não ficará feliz,
Pois publicar não posso…
Faltam-me as cunhas ou as notas,
Que não as letras e os poemas,
As histórias, os relatos e as crónicas,
Os contos, as legendas, os romances,
Para os ou as pensar
Em liberdade!
Porque eu escrevo,
À pena livre,
Voando pelos ares imaginários
Dos sentidos,
Esses, que têm o defeito
De nos dizer, enfim,
Que efetivamente
Estamos acordados,
Mas de pena presa,
Na nossa condição comunitária!
Pensava eu
Eu escrevia à pena livre,
Livre é, na verdade,
A minha pena,
Essa de não conseguir publicar
Em liberdade!
Mas eu escrevo,
Sem pensar,
À pena livre,
Porque é bom viver em liberdade
E guardo nas gavetas da memória
O que, um dia, quis dizer aos outros,
Sem que me prendesse a sociedade!
De qualquer modo
Eu escrevo,
Sem pensar,
À pena livre!
Gil Saraiva
"TIAN AN MEN"
(AS VINDIMAS DE JUNHO)
Cantam as vindimas os Podadores,
Cantam na Praça de Tian An Men...
Vindimas de junho
Onde uvas, aos cachos,
Aguardam a poda...
E há quem as ouça... parecem gritar:
"- Queremos Liberdade! Democracia...
E embora com medo queremos Liberdade!
Não vamos fugir,
Somos milhares pedindo uma voz,
E apenas uma,
Hoje e aqui em Tian An Men,
No lar da Paz Celestial...
Tien An Men, Tian An Men,
Pedimos apenas o que é natural!..."
Fazem chacinas os Caçadores,
Caçam na Praça de Tian An Men...
Chacinas de junho
De foice e martelo, de gás e de bala,
De bomba e canhão, de tanques estanques,
Ceifam-se estudantes...
Morrem às dezenas, centenas, milhares,
Qual carne picada triturada a aço;
Não sobra pedaço...
No lagar de horrores o mosto já fede!...
E choram as vítimas dos Podadores
Choram na Praça de Tian An Men...
Vítimas de Junho...
Só os mortos cantam, num descanso ameno,
Na Praça da Paz Celestial...
Vítimas do medo, que o Poder tremeu,
Vítimas tão cedo de quem não cedeu...
Mortos, mais mortos e outros ainda
Que em Tian An Men
Pra sempre ficaram...
E só porque ousaram pedir Liberdade
Pra poder falar e ouvir e ler,
E poder escolher
Entre concordar e não concordar...
E contam as vítimas os Ditadores
Contam na Praça de Tian An Men
Um, dois, três, cem, mil, e mais e mais...
Aumentam os corpos ceifados a esmo:
Mulheres, homens, velhos, crianças,
Dois mil, três mil...
Vale mais não somar,
Esquecer os totais...
Que em Tian An Men,
A praça da Paz Celestial,
Nasceu um Inferno feito por mil Dantes...
O Verão foi Inverno... morreram estudantes...
E cantam os Anjos num coro de dor
Cantam as Almas de Tian An Men...
E a China já chora
O chão decorado de ossos e tripas,
De músculos rasgados,
Banhados no sangue de um mar de mártires:
Um novo Austerlitz!...
No tocar dos extremos
O sangue é fusão...
Cantam as vítimas os Podadores
Tomara que só em Tian An Men...
Tomara também que no Luso Ocidente,
Vindimas não hajam
Nos meses errados...
Cantam as vítimas os Podadores
Tomara que só em Tian An Men...
Vítimas de Junho...
Pisaram-se as uvas e embora verdes
Um mosto vermelho encheu o lagar
- Tian An Men... Tian An Men...
Os bagos esmagados parecem falar...
E cantam as vítimas os Podadores
Tomara que seja o Canto dos Cisnes...
Gil Saraiva
"SAUDADES"
Saudades
Choro de um riso antigo
Hoje recordado...
Saudades
Vou deixando
Aqui, além...
Recordações
Eu guardo dos meus passos:
Daquele alguém que um dia olhou pra mim
E me chamou de amigo...
E num olhar
Disse poder guardar de mim memória
E registar bem fundo o meu sorriso...
Saudades
Vou guardando, conformado,
Daqui, de além e de todo o lado
Onde há um abraço de amizade;
Onde a Humanidade for humana;
Onde a Paz existir na Natureza
E onde a Liberdade for amada...
Saudades,
Nostalgias, lembranças, emoções
E outros sentimentos pouco claros
Que vão ficando em nós
E que nos tornam
Produtos inventados pela mente
De quem a nosso lado já viveu
E guardou para si a nossa imagem...
Saudades
De outrora... de uma hora,
Daquele momento exato,
Inesquecível,
Daquele instante louco, fugidio,
Em que a flor abriu, desabrochou...
Ou de outro que não conto por pudor,
Mas que por certo falava de Amor...
Saudades,
Momentos presentes do Passado
Que o Futuro não pode apagar;
Vivências de uma vida,
Lágrimas de dor, felicidade,
Desejos e gritos já vividos;
Anos de sonho e de saudades
E dias que são claras ilusões...
Saudades
Vou guardando, vou deixando
Aqui, ali, além, por todo o lado
Onde a lágrima seja borboleta
Ou onde a eternidade iluminada
Se reduza breve, num segundo,
A gotas de orvalho e de saudade...
Saudades
Choro de um riso antigo
Hoje, uma vez mais,
Já recordado
Ou novamente,
Até que enfim, reencontrado!...
Saudades
Choro de um riso antigo...
Gil Saraiva
I
"HINO À MULHER"
No mundo existe um ser, quase irreal,
Ao qual foi dado o nome de Mulher...
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher
Ou o berço mais perfeito,
Mais subtil,
A fonte de toda a Humanidade,
Aquela luz que brilha
Dia e noite
A todos quantos lhe chamaram
Mãe!
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher,
Nogueira que os anos reduziram
A mobília de luxo, estilizada,
De porte antigo,
Austero e imortal;
Ou em mesa de sala,
Gasta, enegrecida,
Onde outras gerações contam segredos
Aos nós ou aos ouvidos da
Avó...
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher
Ou vida que cresceu e que floriu
Sob o olhar da águia e do falcão;
Até que ganhou asas... liberdade;
Até olhar pra trás e num sorriso
Dizer que já foi nossa a nossa
Filha!
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher
Ou alma ou coração; tão terno... tão piedoso...
O cofre-forte, o banco da saudade,
A gema cristalina em mais pureza,
O símbolo mais casto da justiça,
O sinónimo exato para um
Anjo!
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher
Ou espada reluzente, tão certeira,
Tantas vezes fria que foi neve,
Mordaz, esperta, vingativa,
Uma artimanha feita de truques,
Trevas e tristezas, refletindo no espelho
Lucifer!
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher
Ou miragem de outros Tempos neste Tempo;
A gota de água que ao cair deleita
A terra que a recebe saciada;
A estrela mais notável porque bela,
O termo mais correto p’ra
Beleza...
E é tão bonito ouvir dizer Mulher...
Mulher,
Tambor, apocalipse de emoções,
Ritmo frenético dos homens, o gosto,
Aquele sabor a sal tão doce...
Os dias que nem têm uma hora
Pra quem olha pra ti e grita: "Amor";
Pra quem nasce pra ti e quem, um dia,
Já dentro do teu corpo diz
Mulher!
E tu
Simplesmente sorris,
Porque é bonito ouvir dizer
Mulher...
No mundo existe um ser quase irreal...
Gil Saraiva
"CEDO"
Eu quero amar-te! Sim! Com que ansiedade...
Ó única, dos olhos meus, miragem...
Ó por ninguém, jamais, vista paisagem,
Só porque nunca alguém viu a verdade!
Eu quero amar-te p’ra sentir saudade...
Eu quero, ao longe, ver a tua imagem
Projetada em meu corpo de selvagem,
Tão louco por perder a liberdade!
E, no entanto, quero um maior bem:
O trunfo desse amor... desse segredo!
Mas encontro-me só e sem ninguém,
No mundo escuro... só... com o meu medo.
E tão só, sem poder ir mais além,
Fico tão solitário ‘inda tão cedo...
Gil Saraiva
III
“BALADA DO 25 DE ABRIL”
Na negra noite andaste
Décadas mudo, sem pio
Ai, nessa vida passaste
De emigrante a vazio...
Anos assim de tortura,
Silêncio sem liberdade...
Para ganhar à ditadura,
Tens que morrer com vontade...
Quarenta e oito, um a um,
Anos de fome, ilusão,
Criaram força incomum,
De resistir na prisão...
E o vinte e cinco de abril
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
E cantar Sérgio Godinho,
Zeca Afonso e outros mais,
É ser na voz adivinho
Daquele abril de imortais...
Na negra noite andaste
Décadas mudo, sem pio,
Ai, nessa vida passaste
De emigrante a vazio...
Sempre lutar contra engodos,
Contra a PIDE e o calar,
Nasce o Sol, é para todos,
Cabeça erguida a sangrar...
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
E agora que o Sol nasceu,
Na noite clara de abril
Mais de trinta, conto eu,
São os primeiros de mil...
Na negra noite andaste
Décadas mudo, sem pio…
Ai! Nessa vida passaste
De emigrante a vazio...
Mas tão curta é a memória
De um povo que já esqueceu
Que Salazar tem na História
A nossa noite de breu...
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
De economia vivemos,
P'ra nos manter lutamos,
Casa e emprego não temos,
Quem nos pergunta onde vamos?
Somos: imposto, tributo,
Finanças ocas, impostas,
Eu não estou só, num reduto,
Há mais quem queira respostas!
Que o crepúsculo, a madrugada
Anuncie sem ter saudade...
Queremos não ver estragada
Nossa razão, liberdade!
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
Prisão p´ra quem enganou
O nosso Povo, afinal,
Não tem perdão quem roubou
Nossa alma em Portugal.
Os passos foram enganos,
Mas a memória não esquece,
Pelos Direitos Humanos
Justiça a quem a merece!
E o vinte e cinco de abril,
Foi madrugada dos bravos
Capitães que no fuzil
Trocaram balas por cravos...
Urge de novo escutar:
“—Aqui!
Posto de Comando
Do Movimento das Forças Armadas!"
Das nossas Forças Armadas!
Gil Saraiva
"O DIA INTERNACIONAL DA MULHER..."
O outro dia
Foi o Dia Internacional da Mulher,
Mas...?
Então... e hoje...?
E os outros trezentos
E sessenta e quatro dias
De quem são?
Um, eu sei...
Onde há peru ou leitão...
É Natal,
Dia do Rei,
Do Papa ou do sacristão...
Outro ainda eu conheço,
É terça de Carnaval,
Tem também um da Criança
E outro dos Namorados...
Mas que nos importa afinal
Esses dias de lembrança,
Seja dia de Finados
Ou dum longo tempo Pascal?
E o dia do ladrão?
Da alegria? Da velha?
Da fome ou da tradição...?
Ninguém me diz quando são?
O Dia Internacional da Mulher...
Mas que coisa que inventaram,
Um dia que aproveitaram
Para enganar… quem quiser...
Exploram e chamam fraco
Ao sexo feminino...
Esse bebé é menino?
Ou… a menina está bem?
Não!
Eles não enganam ninguém!
É medo... Eu sei!
É medo que fique forte...
Dão-lhe um dia, fazem corte,
E através dele criam lei...
Mas que grande hipocrisia,
Dos senhores da valentia...
O outro dia
Foi o Dia Internacional da Mulher.
Mas...? Então... e hoje...?
E os outros trezentos
E sessenta e quatro dias de quem são?
São daqueles a quem
Um seio materno
Deu vigor, amor, dedicação...
São daqueles por quem
Esse ser terno
Sentiu dor, fome,
Raiva, humilhação...
Nos outros dias do ano,
Nos dias do dia-a-dia,
Eu vejo a panela ao lume,
A casa passada a pano,
A rotina do costume:
Roupa cosida, lavada,
Comida bem preparada,
Casa pronta,
Chão esfregado,
E o soalho encerado...
Mais o trabalho lá fora,
Pago por meio ordenado,
Se quiser ou vai embora...
Nos outros dias do ano
Sexo fraco
É para manter,
Assim manda o soberano,
Porque assim é que é viver...
Ter que ser mãe
E ser escrava,
Fazer tudo e calar só.
Andar descalça na lava
E depois limpar o pó...
E não esquecer o marido,
Pois o pobre homem,
Coitado,
Deve estar aborrecido,
Se deve sentir cansado,
Porque cansa
Ser servido
E dar ordens bem sentado...
O outro dia foi o Dia Internacional da Mulher…
Mas...? Então... e hoje...?
E os outros trezentos
E sessenta e quatro dias
De quem são?
Não importa!
Mulheres do mundo inteiro,
Digam: Não!
No Paquistão,
Ou no mais simples outeiro...
Desse dia da mulher
Façam um dia de luta!
Porque há de a mulher
Ser puta e o homem
Garanhão?
Nesse dia da mulher
Façam vigílias e luto
Contra o Patriarca bruto,
Neste mundo
De tabus e repressões...
Digam bem alto,
Gritando:
"- Chega de humilhações!"
Que esse dia da mulher
Seja apenas mais um dia
Para as que já conquistaram
O que mundo lhes devia...
Porém,
Para a maioria:
É o dia da revolta,
Não de festa,
Mas de garra,
De uma garra
Que se solta
Para acabar a fanfarra,
Para impor a igualdade,
Para conquistar:
Liberdade!
O outro dia
Foi o Dia Internacional da Mulher...
Gil Saraiva