Livro de Poesia - Sintagmas da Procela e do Libambo: O Menino de Aleppo - VI
VI
"O MENINO DE ALEPPO…"
Aleppo, Síria,
Oito horas e trinta minutos da manhã,
Bairro de Al-Qatergui,
Verão quente, muito quente,
Em pleno Outono,
Terra de horrores,
Uma ambulância acaba de chegar,
Qual anjo descendo até às portas do Inferno…
Rapidamente
O socorrista Ammer Hamami,
Corre para um edifício,
Destruído à bomba,
Para voltar trazendo nos braços Omran,
O menino de Aleppo,
Que encontrou deitado sobre os escombros,
Parecendo fatigado
Depois de uma longa conversa
Com a velha Morte…
No rosto do infante o sangue quase secou,
Mas tem demora…
O cabelo de pardal voando em liberdade
É agora uma pasta turva, desalinhada,
Sem brilho, cinzenta,
A espaços arruivada por glóbulos secos
Fugidos, há pouco,
De um crânio fissurado
Pelos detritos urbanos
De um bombardeamento lançado
Já noite finda.
Nessa madrugada…
A boca não ri,
O olhar parou de olhar
Mas os olhos ainda
Derivam sem sentido…
A face esquerda
Está pintada de uma guerra
Para a qual não foi chamado,
Pintada não, manchada,
Mas quase parece tatuagem,
Uma rubra máscara de horror
Só por zombies sonhada
E os zombies nem existem…
Os lábios não falam,
O menino não chora
Nem chama por ninguém,
O lado direito do rosto é obra prima de pó,
De sangue, de barro,
Dos aviões de Putin
A mando do Governo Sírio,
De Bashar al-Assad,
Que o poder vicia,
Corrompe (mas sabe tão bem).
Um verdadeiro tributo
À hipocrisia
Dos mandantes,
Um dano colateral
De cinco anos
E pés descalços,
Entre outros percalços…
A camisola de algodão,
De mangas curtas,
Ornada de bonecos coloridos,
E o pequeno calção
Subido, a meio das coxas,
Perderam juntos o design
De pijama de verão,
Viraram camuflado de soldado
Que não vence batalhas,
Que já perdeu a guerra
Onde nunca tinha entrado…
Aleppo, Síria,
Oito horas e quarenta minutos
Da manhã,
Ammer senta Omran
Num banco cor de laranja
Da ambulância
De interior limpo,
Quase imaculado,
Um corpo estranho de puro
Numa luta suja…
E rapidamente o socorrista
Volta a sair,
Mais umas saídas,
Na busca infinda por outras vidas…
O menino de Aleppo
Ali só, ali, nessa viatura,
Onde o contraste gritante da imagem
Parece chorar as lágrimas
Que Omran nunca verteu.
Subitamente,
O menino leva a mão
À face esquerda,
Estrega o olho
Invadido pelo seu próprio sangue
E a máscara dessa face aumenta,
Cresce, diaboliza e me atormenta.
Enquanto a pele,
Agora encarnada,
Já chega ao queixo
Ensanguentada…
Com surpresa os seus olhos descem
Sobre a mão que, nesta hora,
O sangue já mancha,
Parece não entender a cor,
A humidade ou o odor…
Eu vi tudo,
E todo o mundo viu,
Que o jornalista Mahmud Rastan
Tudo filmou para a História, para nós,
Para as vergonhas do Século XXI,
Nesta entrada sangrenta
De um Terceiro Milénio
Que continua negro,
De trevas, de atrocidades,
Coisas vulgares,
Sem quaisquer novidades…
O menino de Aleppo
Nunca chorou,
Mas chorei eu por ele
E vós também,
Muitos de vós e todos os outros
Que viram o que eu vi.
Voltará ele a sorrir, na vida, um dia?
Entenderá alguma vez
O que não tem sentido?
O que se dá a um menino
A quem a infância foi ceifada?
O que se diz? O que se faz?
Talvez o silêncio não diga nada…
Talvez um dia ele fique em paz…
Menino de Aleppo,
Menino de Aleppo,
Porque não choras de cara tapada?
Saí do sofá,
Frente à televisão,
E fui para a cama estranhamente cansado,
Adormeci…
Acordei de repente, em sobressalto,
Chorando o grito mudo de Omran,
O menino de Aleppo,
O meu menino…
Podia ser… podia…
Gil Saraiva