Introdução
No seguimento dos afinismos que ligam quem escreve a quem o poderá vir a ler, é fácil de entender a “Crença em um Fanal na Chona Lôbrega” mesmo que o título fuja aos vocábulos mais correntes, nele se acaba por descobrir a “Esperança em um Farol na Noite Tétrica” ou, como diz o povo, “A Luz ao Fundo do Túnel”. Por mais lúgubre e sinistra que nos pareça a vida, enquanto ela se ancorar numa esperança firme e num acreditar que depois da tempestade tem sempre de chegar um tempo de bonança, não há como não lutar e assim sobreviver.
Todavia, longe dos berços dourados das histórias de encantar, existe um mundo em que nem tudo é justo, correto, educado ou sensível. Na realidade do quotidiano a vida é uma mistura heterogénea entre bem e mal, onde as fronteiras, de ambos os lados, são difusas, mal definidas e quase sempre sem grandes defesas ou segurança entre elas.
Um fanal pode não ter a grandiosidade do Farol de Alexandria, mas, apesar de tudo, não deixa de ser uma luz, que nos dá crença e esperança, na chona lôbrega, qual noite sinistra, em que por vezes nos sentimos envolvidos. Neste momento particular da história da humanidade, em que se enfrenta uma pandemia sem rosto, que colhe sem piedade os anciãos da sabedoria humana, património que são dos povos do mundo, importa resistir, ter a fé, a crença, a esperança, na mais ténue luz que se veja a brilhar.
Gil Saraiva
Nota: Os poemas deste livro foram criados entre 2019 e 2020.
XII
“ O SER DA NOITE”
Para um vagabundo dos limbos,
Um haragano, o etéreo,
Um Senhor da Bruma,
A menina, enquanto mulher,
É a fragrância que lhes tolda a mente,
Fundindo-os a todos
Num ser ímpar que vive da sombra,
Buscando o odor feminino que,
Com a noite,
Lhe invade a razão,
Fazendo-o sonhar que o impossível
Apenas demora mais tempo.
Uma amálgama de sensações odoríferas
Onde a higiene, o perfume e sexo
Se transmutam num só cheiro,
Que embriaga o cérebro
E lhe desperta o corpo,
Tornando o mais pacato dos homens
Em predador feroz,
Sedento de uma presa que se anuncia
Na diáspora das sombras
E da bruma.
Tudo se desfoca na neblina da Lua,
Até a razão, a inteligência e o ego.
O instinto consegue fundir-se
Em harmonia com o sentimento,
O amor com o sexo,
O animal com o racional,
Gerando aquela coisa estranha
A que se chama homem,
Esse urbano selvagem
Que busca, insano,
Pela alma gémea que o entenda
Nessa demanda
Consagrada pelos poetas,
A que muitos ainda chamam de amor.
Enquanto mulher,
A presa torna-se armadilha,
Flor singular num jardim de espinhos,
Capaz de fazer sangrar a alma
Do mais empedernido predador.
Tornando-o escravo da demanda,
Doce vassalo e jardineiro
Que não teme os espinhos,
Os venenos, os caminhos sinuosos,
Da noite onde a bruma
Faz o papel de manto da Lua,
No jardim da essência emocional,
Rendida à paixão
A que simplesmente chama sentimento.
A prosa de uma resposta
Transfigura-se em poema,
O sonho ganha moldes de imperfeita realidade,
O pensamento identifica-se como emoção,
O paradoxo vira quotidiano
E a mulher significa felicidade…
Para o ser da noite
A luz chega com o crepúsculo,
Na janela perdida,
Na bruma efémera de um luar.
Gil Saraiva
IV
"A NOITE"
Se eu fosse um sonho,
Meu amor,
Esta noite tu eras minha!
Esperava na bruma
Pelo teu adormecer...
Sem pressas, sem barulho,
Deixando o silêncio
Se instalar devagarinho.
Poderia espreitar,
Uma vez ou outra,
Aguardando pelo ritmo compassado
Da tua respiração,
Até quando, por fim,
Morfeu te recebesse nos seus domínios.
Saído da bruma, por entre as sombras,
Aproveitando o Quarto Crescente,
Que se iniciou no fim da tarde,
Finalmente,
Eu entraria no limbo do teu cérebro
Para poder passar a ser
Um sonho teu.
E tu, incauta e desprevenida,
Nem darias por mim.
Tomarias o sonho como teu
E nada mais.
Naturalmente, simplesmente,
Apenas mais um sonho.
Regressei ao banho,
Aquele que tomaste hoje,
E introduzi-me nele...
Nesse mundo da imaginação,
Que quase parece acontecer,
Porque sonhavas…
Tu sentiste as minhas mãos
Fazendo deslizar o gel
Pelo teu corpo,
Percorrendo a derme
Como quem corre a maratona,
Sem pressas, sem movimentos bruscos,
Como se fosse comum
Eu explorar-te assim avidamente.
Agora o teu sonho era meu,
Não tinhas como o controlar,
As minhas mãos invadiram-te a boca,
Os seios, as nádegas e o sexo,
O meu corpo molhado esfregou-se pelo teu…
Na loucura dos momentos seguintes
Perdeste a conta de quantas vezes foste possuída,
Nas entradas que entregaste vibrando
Perante o meu avanço hirto e decidido.
A noite pareceu durar uma vida e um momento…
Acordaste tarde, relaxada, suada, húmida e a sorrir,
Já a aurora despontava no horizonte,
Já eu regressara à bruma de onde viera
Silenciosamente…
Um pensamento invadiu-te a mente:
“Hoje o dia só me pode correr bem.”
O Quarto Crescente da Lua
Trouxe-te uma noite
Para mais tarde recordares com um sorriso…
A noite tem destas coisas…
íntimas, secretas, nossas,
Impossíveis realizados pelo âmago,
Desejados pelo querer,
Concretizados pelo sonho,
Traduzidos pela escuridão!
Gil Saraiva
XLI
"LONGA É A NOITE..."
Longa é a noite... tão completa e bela
A manta negra de silêncio feita,
Onde, de branco, a Lua vai, singela,
Dançando um surdo cintilar... perfeita...
Longa é a noite... e aqui, à luz da vela,
Entre estas sombras, só... insatisfeita,
A dor suprema chega p'la janela
E no meu coração... então se deita!
Longa é a noite... agora em meu viver...
E eu não sentir amor é ser desgraça;
É ser noite que o dia nunca abraça
Ou vida já esquecida de viver!
Sou laje... cova... túmulo desfeito...
Longa é a noite... agora... no meu peito!
Gil Saraiva
XXXVI
"NA NOITE…"
Na bruma eu vivo, até na escuridão,
Desperto no crepúsculo solar,
Vou vivendo na noite e ao despertar
Outros sombrios seres comigo estão,
Solidários na minha solidão,
Companheiros, na parca luz lunar
Onde os gatos são pardos e onde o ar
Se enche de asas negras, multidão
De caçadores do breu, mais do que eu
Que agora nada tenho p'ra caçar.
Na noite eu vivo os sonhos por sonhar,
Migro para lugares de um mito meu
Feito dos pensamentos que perdi
Lá… onde de viver eu me esqueci…
Gil Saraiva
XXXIII
"A NOITE"
A noite naquela casa caiu,
Igual a outras noites já passadas,
Mas, para mim, diferente a outras noitadas;
Diferente amor que a noite descobriu...
Teu corpo vestido em mim se despiu
Num noturno esquecer de águas paradas,
De noites que a tristeza tem lembradas,
De dias só completos de vazio...
Teu corpo revestiu todo o meu ser,
Teu amor transformou o meu amar,
Na noite que não posso reviver,
Nessa noite que sempre vou lembrar,
Por me ter proibido de a esquecer;
Por a teres proibido de voltar!
Gil Saraiva
III
“PAISAGEM E PAISAGENS”
Do ocre das fachadas
Das acomodações e dos chalés
Imagens de cor ficam gravadas,
Se destacam os detalhes, lés-a-lés,
Das madeiras, dos alçados,
Das varandas,
Passadeiras, caminhos, cordas bambas,
Delimitando espaços e picados…
São os chalés, por fora, salpicados
De espreguiçadeiras inovando
Ora repouso ameno,
Ora pecados,
Que cabe a cada um ir desvendando…
Tudo se vira ao porto, ao mar
E a Valença,
Ponto continental no horizonte,
Que a noite, ao cair, faz revelar
Do outro lado da água, bem de fronte,
Pelas luzes, as formas e a presença
Que olhando podemos vislumbrar…
É neste contexto que te chamo
De sonho, de alma, de paixão,
É nesta paisagem que te amo,
Na relva, na varanda, no colchão…
Perco-me em teu olhar
E sou feliz,
Feliz por te sentir,
Por te tocar,
Por saber que amanhã
Vou acordar
Com tua fragrância em meu nariz…
Mas mais do que esta ilha
Deslumbrante,
Inventada para amores intensos,
Vivos,
Tu és, amor, hoje e doravante
A paisagem de meus passos
Ainda conjuntivos…
Mas em montes e vales me quero perder,
Nas tuas paisagens vou viver,
Sem precisar de outros atrativos…
São paisagens reais que amo e friso
Só porque adoro estar no paraíso…
Gil Saraiva
* Parte I I - Portaló ou o Sortilégio do Paraíso
IX
"NÃO POR MIM..."
Às vezes
Acho-me um ser híbrido...
Não importa se o sou
Mas o que penso...
É como se metade do que me constitui
Fosse sentir
E só a outra parte de mim
Fosse homem nato...
Sou,
Tal como o dia tem na noite
Uma outra face,
Um ser ambidestro
No que toca à mística
Representada pelo coração...
Um quase ser criança
Entre pudores que,
Nesta idade que tenho,
Já extintos deveriam estar.
Mas corre-me nas veias
O devir...
A sensação última de atingir
A plenitude das coisas
Simples e pequenas
Que permanecem fiéis à memória
De quem realmente as viveu
Com existência.
Mas para que falo eu isto?
Que importância tem?
Para que raio interessa
Um tal assunto?
Ahhhhhhh...
Importa refletir,
Sentado nas escadas alvas e frias
Do mármore que edifica e marca
Cada registo do que sou,
Tentando sempre
Ir mais longe no pensar...
O que me move?
Ou, talvez, o que me comove?
Ou, ainda, o que me demove...?
É delicioso poder concluir que,
Em cada caso,
A chave é sempre a mesma:
Sentimentos!
Vindos de dentro,
Da arca radioativa do amor
À qual chamamos
Alma...
Sentimentos,
Desempacotados,
Pelo espírito
Que nos torna humanos,
Postos a render
Para que possamos desfrutar,
A cada pegada impressa
No caminho da vida,
A realização
Do que deveríamos ser
Para que o existir tenha um propósito:
Felizes sermos!...
A demanda pela verdade
É um falso caminho se,
No final da linha,
Não encontrarmos
O amor!
É pela sensualidade dos corpos
Que a alma,
Feita espírito inventivo,
Nos mostra a excelência de uma espécie
Com milénios de existir:
O Ser Humano.
Um ser que não se reproduz apenas,
Mas que se funde em harmonia
Sempre que a longa busca,
Pela alma gémea,
Se conclui com êxito.
Ser sensual
É ser-se humano
E ter com isso a esperança
De perpetuar a espécie
Por forma a poder gritar bem alto,
Aos quatro ventos:
É amor!...
Às vezes
Acho-me um ser híbrido...
Não pelo que sou
Mas pelo que os meus olhos captam
Do mundo
A que chamamos evoluído...
Onde sensualidade
Se confunde com pornografia,
Tal como o bem
Se confunde com o mal...
Às vezes
Acho-me um ser híbrido,
Mas não por mim...
Não por mim...
Gil Saraiva
VIII
"UM COPO"
Um copo de cerveja
E um cigarro...
E a música apalpando toda a gente...
Um copo de cerveja
E um cigarro...
E gente sentindo o corpo quente...
Um corpo que deseja
E mais um charro...
E o álcool subindo calmamente...
Um corpo que deseja
E o mais que agarro...
E outro corpo aquecendo lentamente...
Um litro se despeja,
Zarpa o carro...
E o leito se aproxima ardentemente...
Um litro se despeja,
Zarpa o carro...
E zarpa o sangue no corpo da gente...
Um fogo que se inveja,
Coze o barro…
E… unindo dois corpos fortemente:
É movimento,
Ritmo, ternura,
É febre,
Suspiros e loucura;
É infinito
Num tempo finito,
No segundo louco da expansão...
Um grito se solta
E é bizarro...
É suor, saliva e sucos de emoção...
Um grito se solta,
Coze o barro
No exato momento da fusão!...
É já... ainda não...
E mais... agora!...
É vem... amor...
É dia dos sentidos,
É noite, ardor,
É dentro e fora,
É grito que se quebra em mil gemidos!...
Gil Saraiva
"QUE IMPORTA?"
Temos esta noite...
Pensa bem...
Que importa o amanhã
Se hoje existimos...?
Se podes escrever
As palavras
Que me invadem o ser
E me viciam...
Que importa o amanhã...?
Vício de ti...
É virtual?
Interneticamente inatingível?
Que importa o amanhã
Se a noite é nossa...?
Se é o futuro
Que te dá alento,
Porque não pode o presente
Ser esperança?
Ahhhhh!!!
Nasce comigo em cada tecla!...
Nos diálogos frenéticos
Das janelas privadas,
Fechadas a todos
Que não a nós...
Nasce comigo em cada letra
Teclada com a força
Do bater arrítmico
De nossos corações perdidos,
Para a eternidade,
De tanta paixão...
Ahhhhh!!!
Nasce comigo antes de amanhã,
Porque o agora existe!...
E é nosso, amor,
É todo nosso!!!
Que importa o amanhã...?
Diz-me!
Que importa...?
Gil Saraiva