XLIII
"QUANDO O TEU OLHAR VIER À RUA"
Aqui, no coração, tenho um abismo.
Não sinto, em mim, o eco dos sentidos.
Não escuto mensagens, sem ouvidos.
Estou no limiar de um cataclismo.
Rejeito ser votado ao ostracismo.
Recuso que não oiçam meus pedidos.
Meus olhos, mesmo assim envelhecidos,
Ainda enxergam bem o egoísmo.
Porque me abandonaste, amada minha?
Diz que mal te fiz eu e em que dia.
Vá, diz-me porquê? Vá, sem nostalgia,
Que o peixe já comido perdeu espinha!
Ah! Quando o teu olhar vier à rua,
Não se verá chegar que é nova a Lua.
Gil Saraiva
![A Rua do Prior.jpg]()
XVI
"A RUA DO PRIOR"
(letras para canções do nada, à noite)
Estava já na Univer,
Faro era a cidade,
Pra eu ir viver,
Estudar até tarde...
Eu consegui entrar,
Eu consegui entrar,
No ensino superior...
Meu Deus, vou ser doutor...
Se eu conseguir sair
Se eu conseguir sair
Da Rua do Prior...
Meu Deus, vou ser doutor...
E na Tuna Académica
Com outros cantava,
As canções da polémica,
Que a noite ensinava...
Ia dos Arcos ao «Kream»,
Do Empório ao «Chessenta»...
Pela Rua do Crime
Com a franja na venta...
Até ao Cofre descia,
Espreitava o Porto Fino...
Mais uma vez fugia
Pró Vértice sem tino...
Pois a noite em Faro é assim
Estudar será no fim...
Eu consegui entrar,
Eu consegui entrar,
No ensino superior...
Meu Deus, vou ser doutor...
Se eu conseguir sair
Se eu conseguir sair
Da Rua do Prior...
Meu Deus, vou ser doutor...
E os anos já passaram,
Certas tascas mudaram...
A cerveja é a mesma,
«Super Bock» à maneira,
Quem não bebe dez é lesma,
Quem vai às vinte é asneira...
A cerveja é a mesma,
Os copos é que não,
Quem não bebe dez é lesma
Ou já é doutor então...
Eu consegui entrar,
Eu consegui entrar,
No ensino superior...
Meu Deus, vou ser doutor...
Se eu conseguir sair
Se eu conseguir sair
Da Rua do Prior...
Meu Deus, vou ser doutor...
Mas que importa
Se há cadeira
Em setembro p’ra fazer...
Mais um ano à maneira
Ficarei por prazer...
Os papás vão compreender...
Só se é jovem
Uma vez... compreender...
Eles vão... talvez...
Pois: eu consegui entrar,
Eu consegui entrar,
No ensino superior...
Meu Deus, vou ser doutor...
Se eu conseguir sair
Se eu conseguir sair
Da Rua do Prior...
Meu Deus, vou ser doutor...
Gil Saraiva
Notas: Letra para Banda de garagem “Rock Spot Alive” (anos 80). R. do Prior vulgo R. do Crime
![Caçadora de Sonhos.jpg Caçadora de Sonhos.jpg]()
"CAÇADORA DE SONHOS"
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Armada de vida,
Carente de presas,
Eu... pela cidade
Procuro a saída
Encontro defesas
Na alma do mundo:
Ninguém se quer dar;
Ninguém sabe amar;
Ninguém quer, no fundo,
Saber encontrar
A paz, no profundo
Calor de um segundo...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Eu vejo no dia,
Na noite bravia,
No caminho, na rua,
Entre gente, mais gente,
Vestindo essa moda
(Qual festa tardia
Ao néon da Lua),
A gente que mente
E em bares se acomoda...
E ali, nessa esquina,
Eu vejo no dia,
Na noite bravia,
Se vendendo toda,
Uma pobre menina
Que diz a quem passa:
"- Mil paus... tô na moda..."
No meio da praça,
Se vendendo toda
Joana sem caça,
Carente de presas,
Faz contas à vida:
"- Nem dá prás despesas...
Que porra de vida!..."
E gente infeliz,
Com hora marcada,
Passa e lhe diz:
"- Dou cem e mais nada..."
Caçadora de sonhos...
E tão sem saudade...
Eu já vejo agora
O riso da erva
Nos pés dessa serva,
Que vende por hora
O corpo... estragado...
De tão ser usado.
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Buscando, perdida,
A velha igualdade
Do mundo, da vida...
Buscando ilusões,
Conceitos, ideias,
Credos e orações,
Entre cefaleias...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
É assim: no leve sorriso
Dessa erva daninha;
No cato que cresce
Formando uma espinha;
Na espinha que pica
Aquela andorinha
(Coitada, infeliz,
Que sangue já chora),
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
E choro de mágoa
O gozo sinistro
De certa gentinha,
Com cara de quisto
Pejado de tinha;
E a cara alegre
De um velho ministro
Que julga esconder
O que já foi visto...
Choro... choro e volto a chorar...
Mas... riem as luzes p’la cidade fora...
Riem de mim na noite vizinha;
Riem... riem como quem ri
De uma adivinha prá qual a solução
Não se avizinha...
Riem... riem enquanto meu ser
De novo chora,
Chora como ontem,
Como hoje e agora:
Chora as meninas
No meio da praça
Se vendendo todas
Ao primeiro que passa...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Como posso caçar
Sonhos no mundo?
Como posso amar
Mais que um segundo?
Não tenho saudades
Da terra maldita,
Onde o direito
Não passa de fita...
Minha alma:
Caçadora de sonhos
É tão sem saudade...
Gil Saraiva
![Fria.jpg Fria.jpg]()
"FRIA"
Aqui, a rua está tão agitada...
Nas gentes um sorriso se retrata
E nestas noites, um luar de prata
Aviva a coisa mais inanimada...
E ali no largo, perto da esplanada,
Ali mesmo tu estás, distante, ingrata...
E em meu corpo um fogo se desata,
Queimando esta minha alma já queimada
Por te sentir fria!... Fria e distante...
Por me sentir de todo desprezado...
E nesse tempo, nesse mesmo instante,
Eu começo a fugir amedrontado...
O luar vai... se apaga lancinante...
E ali, no chão, eu quedo abandonado...
Gil Saraiva