II
“SANGUE INOCENTE”
A tradição não é menos complexa
Que brilho do Sol,
Por entre a bruma que se esquiva
A cada passo nosso…
O respeito
É um ser sem aventura,
Num qualquer sistema lendário,
Em que o confronto é letra morta…
A hospitalidade desembarca
Numa costa sem combate,
Ausente de neblina,
Plena de luz…
Espontaneamente,
Alguém conta a alguém
O que alguém pensa de alguém
Sem que ninguém fique a saber mais…
Atos, atitudes e conceitos…
Partes do todo imenso que nos explica,
Caminhos que fazem história
Na Odisseia do que somos!…
Por ódio e vício de guerra
Um americano burro
Manda invadir um Povo esfomeado,
Que a destruição maciça
Veste burca…
Estupidamente,
Que outro nome não há,
A tropa avança sem prova provada
Que não a da propaganda alienada…
Dá-se a chacina,
Num berço da Civilização Ocidental,
Porque o burro não reconhece Alá
Nem sabe das mil e uma noites de Bagdad!...
Passam os meses…
Morrem os dias…
Saltam linhas-férreas, na vizinha Espanha,
E ao som das bombas, de um Terror sem nome,
Um tal de Bin Laden mutila milhares…
Onze de Março… Onze de Setembro…
Que guerra é Santa e os povos migalhas…
Que as Torres são Gémeas
Como as linhas-férreas…
O direito à diferença,
De crença e de ser,
Terá que existir no novo Ocidente…
Mas se, por acaso,
Tal não aparecer
O sangue será de novo inocente…
A tradição não é menos complexa
Que brilho do Sol,
Por entre a bruma que se esquiva
A cada passo nosso…
O respeito
É um ser sem aventura,
Num qualquer sistema lendário,
Em que o confronto é letra morta…
A Humanidade
Não é um conjunto homogéneo…
Somos todos nós!
Diferentes, iguais,
Seres naturais com burca provada
Ou véu pelo rosto,
Cara destapada ou nu descomposto!
Sem homofobias, racismos ou trelas,
Sem xenofobia, perseguição, fanatismo,
O nascer do dia, vê-se das janelas,
E é para todos, sem malabarismo…
Onze de Março… Onze de Setembro…
Que guerra é Santa e os povos migalhas…
Que as Torres são Gémeas
Como as linhas-férreas…
A hospitalidade desembarca
Numa costa sem combate,
Ausente de neblina,
Plena de luz…
Gil Saraiva
VIII
"UM COPO"
Um copo de cerveja
E um cigarro...
E a música apalpando toda a gente...
Um copo de cerveja
E um cigarro...
E gente sentindo o corpo quente...
Um corpo que deseja
E mais um charro...
E o álcool subindo calmamente...
Um corpo que deseja
E o mais que agarro...
E outro corpo aquecendo lentamente...
Um litro se despeja,
Zarpa o carro...
E o leito se aproxima ardentemente...
Um litro se despeja,
Zarpa o carro...
E zarpa o sangue no corpo da gente...
Um fogo que se inveja,
Coze o barro…
E… unindo dois corpos fortemente:
É movimento,
Ritmo, ternura,
É febre,
Suspiros e loucura;
É infinito
Num tempo finito,
No segundo louco da expansão...
Um grito se solta
E é bizarro...
É suor, saliva e sucos de emoção...
Um grito se solta,
Coze o barro
No exato momento da fusão!...
É já... ainda não...
E mais... agora!...
É vem... amor...
É dia dos sentidos,
É noite, ardor,
É dentro e fora,
É grito que se quebra em mil gemidos!...
Gil Saraiva
"TIAN AN MEN"
(AS VINDIMAS DE JUNHO)
Cantam as vindimas os Podadores,
Cantam na Praça de Tian An Men...
Vindimas de junho
Onde uvas, aos cachos,
Aguardam a poda...
E há quem as ouça... parecem gritar:
"- Queremos Liberdade! Democracia...
E embora com medo queremos Liberdade!
Não vamos fugir,
Somos milhares pedindo uma voz,
E apenas uma,
Hoje e aqui em Tian An Men,
No lar da Paz Celestial...
Tien An Men, Tian An Men,
Pedimos apenas o que é natural!..."
Fazem chacinas os Caçadores,
Caçam na Praça de Tian An Men...
Chacinas de junho
De foice e martelo, de gás e de bala,
De bomba e canhão, de tanques estanques,
Ceifam-se estudantes...
Morrem às dezenas, centenas, milhares,
Qual carne picada triturada a aço;
Não sobra pedaço...
No lagar de horrores o mosto já fede!...
E choram as vítimas dos Podadores
Choram na Praça de Tian An Men...
Vítimas de Junho...
Só os mortos cantam, num descanso ameno,
Na Praça da Paz Celestial...
Vítimas do medo, que o Poder tremeu,
Vítimas tão cedo de quem não cedeu...
Mortos, mais mortos e outros ainda
Que em Tian An Men
Pra sempre ficaram...
E só porque ousaram pedir Liberdade
Pra poder falar e ouvir e ler,
E poder escolher
Entre concordar e não concordar...
E contam as vítimas os Ditadores
Contam na Praça de Tian An Men
Um, dois, três, cem, mil, e mais e mais...
Aumentam os corpos ceifados a esmo:
Mulheres, homens, velhos, crianças,
Dois mil, três mil...
Vale mais não somar,
Esquecer os totais...
Que em Tian An Men,
A praça da Paz Celestial,
Nasceu um Inferno feito por mil Dantes...
O Verão foi Inverno... morreram estudantes...
E cantam os Anjos num coro de dor
Cantam as Almas de Tian An Men...
E a China já chora
O chão decorado de ossos e tripas,
De músculos rasgados,
Banhados no sangue de um mar de mártires:
Um novo Austerlitz!...
No tocar dos extremos
O sangue é fusão...
Cantam as vítimas os Podadores
Tomara que só em Tian An Men...
Tomara também que no Luso Ocidente,
Vindimas não hajam
Nos meses errados...
Cantam as vítimas os Podadores
Tomara que só em Tian An Men...
Vítimas de Junho...
Pisaram-se as uvas e embora verdes
Um mosto vermelho encheu o lagar
- Tian An Men... Tian An Men...
Os bagos esmagados parecem falar...
E cantam as vítimas os Podadores
Tomara que seja o Canto dos Cisnes...
Gil Saraiva
"CAÇADORA DE SONHOS"
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Armada de vida,
Carente de presas,
Eu... pela cidade
Procuro a saída
Encontro defesas
Na alma do mundo:
Ninguém se quer dar;
Ninguém sabe amar;
Ninguém quer, no fundo,
Saber encontrar
A paz, no profundo
Calor de um segundo...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Eu vejo no dia,
Na noite bravia,
No caminho, na rua,
Entre gente, mais gente,
Vestindo essa moda
(Qual festa tardia
Ao néon da Lua),
A gente que mente
E em bares se acomoda...
E ali, nessa esquina,
Eu vejo no dia,
Na noite bravia,
Se vendendo toda,
Uma pobre menina
Que diz a quem passa:
"- Mil paus... tô na moda..."
No meio da praça,
Se vendendo toda
Joana sem caça,
Carente de presas,
Faz contas à vida:
"- Nem dá prás despesas...
Que porra de vida!..."
E gente infeliz,
Com hora marcada,
Passa e lhe diz:
"- Dou cem e mais nada..."
Caçadora de sonhos...
E tão sem saudade...
Eu já vejo agora
O riso da erva
Nos pés dessa serva,
Que vende por hora
O corpo... estragado...
De tão ser usado.
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Buscando, perdida,
A velha igualdade
Do mundo, da vida...
Buscando ilusões,
Conceitos, ideias,
Credos e orações,
Entre cefaleias...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
É assim: no leve sorriso
Dessa erva daninha;
No cato que cresce
Formando uma espinha;
Na espinha que pica
Aquela andorinha
(Coitada, infeliz,
Que sangue já chora),
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
E choro de mágoa
O gozo sinistro
De certa gentinha,
Com cara de quisto
Pejado de tinha;
E a cara alegre
De um velho ministro
Que julga esconder
O que já foi visto...
Choro... choro e volto a chorar...
Mas... riem as luzes p’la cidade fora...
Riem de mim na noite vizinha;
Riem... riem como quem ri
De uma adivinha prá qual a solução
Não se avizinha...
Riem... riem enquanto meu ser
De novo chora,
Chora como ontem,
Como hoje e agora:
Chora as meninas
No meio da praça
Se vendendo todas
Ao primeiro que passa...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Como posso caçar
Sonhos no mundo?
Como posso amar
Mais que um segundo?
Não tenho saudades
Da terra maldita,
Onde o direito
Não passa de fita...
Minha alma:
Caçadora de sonhos
É tão sem saudade...
Gil Saraiva