III
“PAISAGEM E PAISAGENS”
Do ocre das fachadas
Das acomodações e dos chalés
Imagens de cor ficam gravadas,
Se destacam os detalhes, lés-a-lés,
Das madeiras, dos alçados,
Das varandas,
Passadeiras, caminhos, cordas bambas,
Delimitando espaços e picados…
São os chalés, por fora, salpicados
De espreguiçadeiras inovando
Ora repouso ameno,
Ora pecados,
Que cabe a cada um ir desvendando…
Tudo se vira ao porto, ao mar
E a Valença,
Ponto continental no horizonte,
Que a noite, ao cair, faz revelar
Do outro lado da água, bem de fronte,
Pelas luzes, as formas e a presença
Que olhando podemos vislumbrar…
É neste contexto que te chamo
De sonho, de alma, de paixão,
É nesta paisagem que te amo,
Na relva, na varanda, no colchão…
Perco-me em teu olhar
E sou feliz,
Feliz por te sentir,
Por te tocar,
Por saber que amanhã
Vou acordar
Com tua fragrância em meu nariz…
Mas mais do que esta ilha
Deslumbrante,
Inventada para amores intensos,
Vivos,
Tu és, amor, hoje e doravante
A paisagem de meus passos
Ainda conjuntivos…
Mas em montes e vales me quero perder,
Nas tuas paisagens vou viver,
Sem precisar de outros atrativos…
São paisagens reais que amo e friso
Só porque adoro estar no paraíso…
Gil Saraiva
* Parte I I - Portaló ou o Sortilégio do Paraíso
X
"POSSA SER EU!"
Meu amor...
No espaço diminuto do meu cérebro
Não consigo enclausurar o amor que sinto...
É vasto demais,
É denso, é forte,
E nem zipado cabe entre neurónios...
Poderia eu arquivá-lo nessa rede,
Aquela a que chamamos de Internet,
Em servidores sem fim...
"Terabytes" e "Terabytes" de sentir...
Mas é pequena a "Net",
É curta, é vã...
Ah, mas então...
Só dessa forma se tornaria a rede
Um sentimento só,
Somente e apenas...
Mas tanto ficaria por expressar,
Pois está por inventar o “chip”
Ou a memória
Que possa processar o verbo amar
Com a dimensão e a dignidade
Que este deve possuir...
Porém...
Um processo existe, um meio, uma forma,
De saberes, ó meu amor, o quanto te amo...
Há um condensador do meu sentir
Que podes ler sem erro,
“Bug” ou vírus
Que o afete...:
O brilho dos meus olhos quando a retina
Capta a tua imagem e a retém
Lá para lados desse órgão interno
A que teimamos dar por nome:
Coração!...
O fenómeno pode não ser sensível
À ânsia da descoberta do sentir
Através de quaisquer materiais...
Ah... Mas se amares...
Vais poder ler o brilho oculto
Aos olhos de um outro qualquer alguém
E, meu amor, que esse alguém
Possa ser eu!
Gil Saraiva
IX
"NÃO POR MIM..."
Às vezes
Acho-me um ser híbrido...
Não importa se o sou
Mas o que penso...
É como se metade do que me constitui
Fosse sentir
E só a outra parte de mim
Fosse homem nato...
Sou,
Tal como o dia tem na noite
Uma outra face,
Um ser ambidestro
No que toca à mística
Representada pelo coração...
Um quase ser criança
Entre pudores que,
Nesta idade que tenho,
Já extintos deveriam estar.
Mas corre-me nas veias
O devir...
A sensação última de atingir
A plenitude das coisas
Simples e pequenas
Que permanecem fiéis à memória
De quem realmente as viveu
Com existência.
Mas para que falo eu isto?
Que importância tem?
Para que raio interessa
Um tal assunto?
Ahhhhhhh...
Importa refletir,
Sentado nas escadas alvas e frias
Do mármore que edifica e marca
Cada registo do que sou,
Tentando sempre
Ir mais longe no pensar...
O que me move?
Ou, talvez, o que me comove?
Ou, ainda, o que me demove...?
É delicioso poder concluir que,
Em cada caso,
A chave é sempre a mesma:
Sentimentos!
Vindos de dentro,
Da arca radioativa do amor
À qual chamamos
Alma...
Sentimentos,
Desempacotados,
Pelo espírito
Que nos torna humanos,
Postos a render
Para que possamos desfrutar,
A cada pegada impressa
No caminho da vida,
A realização
Do que deveríamos ser
Para que o existir tenha um propósito:
Felizes sermos!...
A demanda pela verdade
É um falso caminho se,
No final da linha,
Não encontrarmos
O amor!
É pela sensualidade dos corpos
Que a alma,
Feita espírito inventivo,
Nos mostra a excelência de uma espécie
Com milénios de existir:
O Ser Humano.
Um ser que não se reproduz apenas,
Mas que se funde em harmonia
Sempre que a longa busca,
Pela alma gémea,
Se conclui com êxito.
Ser sensual
É ser-se humano
E ter com isso a esperança
De perpetuar a espécie
Por forma a poder gritar bem alto,
Aos quatro ventos:
É amor!...
Às vezes
Acho-me um ser híbrido...
Não pelo que sou
Mas pelo que os meus olhos captam
Do mundo
A que chamamos evoluído...
Onde sensualidade
Se confunde com pornografia,
Tal como o bem
Se confunde com o mal...
Às vezes
Acho-me um ser híbrido,
Mas não por mim...
Não por mim...
Gil Saraiva
"Vagabundo das Sombras"
Vagabundo das sombras,
Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo,
Perdido em sonhos que não meus,
Senhor da Bruma esquecido
Nos recantos esconsos dos céus...
Procuro, procuro no crepúsculo,
Encontrar a arma branca
Que me assassine a saudade
De dias de sorriso
E noites de prazer...
Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo,
Senhor da Bruma,
Na net perdido entre circuitos
Onde os sentimentos
São palavras sem cheiro
E a caricia não tem o sentir da derme,
Suave, humana, apetecida...
Vagabundo de mim
Que não encontro
A cristalina razão
De meu existir...
Haragano da net,
Etéreo na viagem,
Crisálida serei
Num casulo chamado internet...
Senhor da Bruma,
Soberano oculto que busca, insano,
Um reino chamado de Amor.
Gil Saraiva
"Haragano, O Etéreo, um Senhor da Bruma"
(A HISTÓRIA...)
Ao princípio
Senti-me como que um desaparecido...
Não em combate,
Como certos militares em terra estranha...
Não no triângulo das Bermudas,
Como reza a história de muitos navios
Perdidos na Bruma...
Não em pleno ar,
Como se fosse um avião
Engolido pela própria atmosfera
Algures entre nuvem e bruma...
Não! Nada disso! Desaparecido de mim...
Sem identidade... Sem existência...
Sem referências... Sem sentido de viver...
Sem imagens claras, perdido na bruma...
Imagine-se a montanha!
Grande! Monstruosamente grande!
Gigante mesmo
Elevando-se na planície!
Isso fui eu,
O eu Narciso antes da primeira queda,
Antes do começo das erosões...
Seguidas, repetidamente insistentes,
Continuadas no tempo e na vida...
Isso fui eu,
Antes dos abalos, dos sismos,
Dos terramotos sem fim
Num mundo feito de sobrevivência
Mais que de essência!
Isso fui eu, antes da bruma...
E a montanha foi perdendo forma,
Volume, dimensão...
Até se confundir na planície amorfa
Da multidão sem rosto,
Sem esperança,
Sem dignidade
E sem amor próprio...
Aparentemente,
Eu tinha desaparecido,
Sem que um vestígio de sobrevivência
Servisse de pista
Para uma busca por mim mesmo...
Imagine-se um desastre
Num qualquer ponto isolado do globo,
Onde um hipotético sortudo
Salvo da morte pelo acaso,
Irremediavelmente ferido,
Acabasse por ficar
Virtualmente irreconhecível
Perante a exposição ao tempo
E às depredações dos animais
E da própria natureza...
Isso era eu!
Perdido de mim e dos meus...
Desaparecido do mapa
Dos humanos com voz própria!
Ao princípio
Foi assim que me senti.
Depois, dei conta que vagueava
Sem destino ou rota certa...
Algures entre nenhures,
Um ser disforme,
Parco de alma e existir...
Durante momentos que pareceram anos,
Durante anos que não tiveram momentos,
Apenas procurei, não sei o quê...
Não sei porquê...
E não sei como...
Quando finalmente dei por mim,
Não passava de um vagabundo,
Perdido de si em busca do ser...
Era como se os locais,
Por onde a minha sombra
Me garantia a existência,
Fossem nuvens sem forma,
Estradas sem referências,
Caminhos sem lei...
Brumas sem paisagens...
Apenas limbos...
Apenas Éter...
Apenas Bruma...
Às vezes sentia
Que estava numa grande teia,
Cheia de predadores,
Plena de vítimas,
Ávida de sentidos e sentimentos...
Uma teia universal que me envolvia
Como uma rede escura e semieléctrica...
Descobri, aos poucos,
Que tinha sido absorvido pela internet
E que me tornara
Num Vagabundo Dos Limbos,
Em Haragano, O Etéreo,
No Senhor da Bruma,
Numa Lenda Urbana
De quem nunca ninguém ouviu falar,
Num Senhor dos Tempos
Sem tempo para si mesmo...
Um Sir, à inglesa, polido na forma,
Vazio no íntimo de si próprio,
Repleto de vontade e de reconstrução...
Um Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo,
Senhor da Bruma,
Em busca da identidade esquecida
Num passado sem memória...
Até que renasci,
Gritando aos cinco ventos
A minha alvorada...
Vento de ser,
Vento de existir,
Vento de viver,
Vento de sentir,
Vento de amar...
De novo era gente,
Uma criatura nova,
Não na idade que essa
Não deixa Cronos em cuidados,
Mas na vida.
Eu era...
Eu sou, esse Sir,
O Vagabundo Dos Limbos...
Haragano, O Etéreo...
Senhor da Bruma...
Pela rede universal transmitindo
A história de uma alma
Que aos poucos fui reconstruindo,
Sem vaidade, sem orgulho,
Sem a certeza sequer de ser ouvido...
Porém... com a esperança
De que ao falar globalmente
Para este universo imenso,
Possa um dia agir localmente
Na alma de um ser que como eu
Se sinta desaparecido a dada altura...
Assino, como me conhecem:
Sir, Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo...
Senhor da Bruma...
Gil Saraiva
"CHORAI"
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Aqueles que chutam a bola
Apocalíptica dos sonhos sem prazer...
Aqueles a quem a vida disse, um dia,
Pra sofrerem as torturas da agulha;
A doce sensação do não sentir;
E o ventre seco e frio da própria
Morte...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Aqueles que veneram a miragem negra,
Heroína suprema dos homens
Sem rosto, sem nome
E sem força de vontade
Ou sem amor...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Porque deles é o reino da vida
Sem Futuro,
Porque neles tudo é estéril,
Seco e sem sentido;
Porque eles são o espelho mais triste
Do Inferno.
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Porque entre eles passeia a Negra Dama,
Plena de clientes, satisfeita...
Porque de Tchernobil já estão vacinados...
Porque oxigénio, Amazonas e ozono,
São coisas supérfluas, palavras soltas,
Num mundo que deixaram já faz tempo...
Porque a SIDA é apenas um atalho,
Não um mal, apenas e somente
O caminho mais curto para quem
Já não tem tempo...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Lagartas fechadas num casulo
Selado nas veias, ocas de sangue,
Plenas de vício e de tristeza...
Crisálidas, uns insetos humanos
Que nunca serão gente;
Vazios de esperança, carentes de voz...
Seres de asas queimadas
Que jamais voarão rumo à liberdade;
Que jamais sentirão o cheiro das flores,
O gosto, o gozo de voar, ser borboleta...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Chorai lágrimas de amigo, irmão, de primo
Ou filho até...
Chorai os que odeiam, agora, a luz
do Astro Rei...
Chorai os corpos vivos
A quem a mente abandonou...
Chorai aqueles que andam à procura
Da alma que não sabem encontrar...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Chorai também aqueles olhos parados...
Deus…!!!
Aqueles olhos parados de quem já foi criança,
De quem era tão engraçadinho
Nos primeiros sorrisos... lembram...?
E quando, um dia, ele te chamou "- Mamã..."
Ainda te recordas…?
E quando, a dado momento,
Deu os primeiros passos,
E tu, pai orgulhoso,
O abraçaste entre as essas mãos,
Amostras firmes de vigor,
Então tão carinhosas...
Não é fácil esquecer…!!!
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Que já tiveram mãe, avós, amigos,
A quem demos a mão,
Com quem brincamos à apanhada,
Escondidas, cabra-cega, monopólio,
Damas, xadrez, gamão, jogos de cartas,
De amor, carinho, afeto ou de amizade...
Chorai... Aqueles que sabiam quem tu eras,
A quem contavas, baixinho... a rir, talvez...
Segredos que o mundo inteiro ignorava.
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
E sejam brancos, negros, vermelhos,
Arraçados; chineses, esquimós, gregos,
Franceses, angolanos, alemães
Ou portugueses, não nos importa a nós...
Chorai...
Chorai comigo budistas,
Católicos, ateus ou protestantes;
Velhos, crianças, meninos e meninas,
Jovens na flor da idade, homens, mulheres,
E toda a gente que neste mundo exista...
Chorai...
Chorai comigo...
Uni hoje vossa dor à minha mágoa.
Chorai, chorai comigo, ó, por favor...
Que a culpa não é só de quem cultiva,
Trafica ou se vicia... Mas sim de todos nós
Que não fazemos nada para ceifar da Terra
A triste chaga... Ao menos... chorai...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Condenados por nós à Morte lenta...
Chorai...
Chorai comigo...
Chorai, chorai comigo...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Gil Saraiva
"SENTIR CAMONIANO"
Amor é eterno nada e universo;
É ilusão que muito e pouco dura;
É muita fome ter quando há fartura;
É viver o contrário do inverso;
É um calado estar quando converso;
É doença que não procura a cura;
É seta que não faz qualquer rotura;
É submarino coração emerso;
É vela acesa que apagada existe;
É o sonho do homem acordado;
É a felicidade de estar triste...
Mas como podes ter tu sublimado
Este sentir, Camões, que descobriste
Prá inda ser presente o Amor passado?...
Gil Saraiva
"AQUI"
Aqui, na praia, voam as gaivotas;
Bate de leve o mar azul na areia;
Neste arbusto uma aranha tece a teia;
No horizonte navios cruzam rotas...
Na ponte, uns amadores pescam botas;
Por todo o lado, o quente Sol passeia
E só se quebra a calma cá na aldeia,
Quando os jovens ensaiam suas motas.
No ar sente-se o cheiro a maresia,
Cheira nas tascas a sardinha assada,
A marisco apanhado nesta ria.
Em toda a parte há riso, gargalhada;
Só eu fico sofrendo neste dia;
Só... por sentir distante minha amada.
Gil Saraiva
“SOU”
Eu sou uma parte do que escrevo,
E escrevo para saber aquilo que sou,
Sou ego, animal, humano, trevo,
Sou tudo o que fui, o que amou,
Riu, sentiu, viveu e teve medo,
Esperança, fé; eu sou quem já chorou;
E continuo a achar que ainda é cedo,
Para ser muito mais daquilo que sou!
Gil Saraiva
"PALAVRAS"
Pensemos
Em tudo o que nos constitui,
Em qualquer universo
De existir...
Aqui!
Neste mundo em que vivemos,
Enquanto seres
Que se desenvolvem
Pela comunicação das partes
Com o todo,
Na nossa realidade,
De humanos
Que se movem
Pelas relações entre eles
E o próprio meio...
Aqui,
Onde aquilo que mais depressa
Se devora, consome
Ou se assimila e que,
Por outro lado,
Mais produz, cria
Ou desenvolve é,
Com inequívoca certeza,
A Palavra.
Esse conjunto de letras certas,
Absolutas ou relativizadas,
E não um qualquer paleio
Ou palavreado em abstrato...
Não se trata
De uma simples conversa
Sem sentido
Ou mera circunstância...
Não!
Importa sim o ato criativo
Que nos ajuda a pensar e progredir...
Importa realmente a expressão última
Que nos torna comunicativos,
Únicos e humanos:
A Palavra.
Em suma:
Nada é tão apelativo
Como uma boa meia dúzia
De doces palavras...
Ditas no momento correto,
Na altura exata,
À pessoa certa!
É imenso o valor dessa
Palavra!...
Tudo se constrói pela linguagem!
Tudo se pensa pela soma
De palavras
Em contínuo turbilhão...
Tudo se vive e vibra
Nas palavras...
Caem governos
Por uma palavra
A mais ou a menos,
Sobem e descem ações,
Vivem dela os Mercados,
Vive a crise, a inflação.
Até a Lei e a ordem
Da palavra fazem força.
Descreve a queda do Euro,
O confisco dos mais pobres
E o fausto
Dos magnatas...
Ficção ou realidade;
Sonho ou existir;
Ser ou Não Ser;
Liberdade ou tirania;
Meu Deus...
Palavras!
A tentação
Última dos poetas:
Sobreviver
Depois do Ser!
E renascer nas páginas
Que deixam
Para a eternidade
Somatórios de letras,
Que lhes darão vida,
Após a morte:
Palavras!
Palavras
Que se escrevem a sangue
Ou no vermelho dos cravos,
Fáceis de dizer,
difíceis de cumprir:
Paz, Liberdade, Solidariedade,
Saúde, Vida...
Palavras,
Matamos por elas,
Sofremos por elas,
Morremos por elas,
Mas também nascemos, vivemos,
Sentimos, rimos e festejamos
Por elas.
Que se calem jamais essas palavras.
Gil Saraiva