XXIV
"O SER HUMANO”
Bem devagar devasta o ser humano
A natureza, sem qualquer pudor.
O rio, ao vê-lo, foge incolor,
Duvidoso, o luar, se afasta insano,
Tão cansado de o ver, ano após ano.
Pelas veredas só se gasta a cor
E nas nascentes vida, sem sabor,
Contamina quem bebe, causa dano,
Por vírus e bactérias faz doentes.
Esse pálido ser quase se arrasta:
Boca, nariz, olhar murcho, uma pasta,
Flácido, cavernoso, ombros pendentes.
Se o ser humano der o salto agora
Talvez se salve a Terra que ele ignora…
Gil Saraiva
XII
“O SER DA NOITE”
Para um vagabundo dos limbos,
Um haragano, o etéreo,
Um Senhor da Bruma,
A menina, enquanto mulher,
É a fragrância que lhes tolda a mente,
Fundindo-os a todos
Num ser ímpar que vive da sombra,
Buscando o odor feminino que,
Com a noite,
Lhe invade a razão,
Fazendo-o sonhar que o impossível
Apenas demora mais tempo.
Uma amálgama de sensações odoríferas
Onde a higiene, o perfume e sexo
Se transmutam num só cheiro,
Que embriaga o cérebro
E lhe desperta o corpo,
Tornando o mais pacato dos homens
Em predador feroz,
Sedento de uma presa que se anuncia
Na diáspora das sombras
E da bruma.
Tudo se desfoca na neblina da Lua,
Até a razão, a inteligência e o ego.
O instinto consegue fundir-se
Em harmonia com o sentimento,
O amor com o sexo,
O animal com o racional,
Gerando aquela coisa estranha
A que se chama homem,
Esse urbano selvagem
Que busca, insano,
Pela alma gémea que o entenda
Nessa demanda
Consagrada pelos poetas,
A que muitos ainda chamam de amor.
Enquanto mulher,
A presa torna-se armadilha,
Flor singular num jardim de espinhos,
Capaz de fazer sangrar a alma
Do mais empedernido predador.
Tornando-o escravo da demanda,
Doce vassalo e jardineiro
Que não teme os espinhos,
Os venenos, os caminhos sinuosos,
Da noite onde a bruma
Faz o papel de manto da Lua,
No jardim da essência emocional,
Rendida à paixão
A que simplesmente chama sentimento.
A prosa de uma resposta
Transfigura-se em poema,
O sonho ganha moldes de imperfeita realidade,
O pensamento identifica-se como emoção,
O paradoxo vira quotidiano
E a mulher significa felicidade…
Para o ser da noite
A luz chega com o crepúsculo,
Na janela perdida,
Na bruma efémera de um luar.
Gil Saraiva
XXXVIII
"O SER SEM AMANHÃ"
Durante todo o dia o cão uivou...
Uivou... gemeu... ganiu... chorou em vão...
Lobo feroz domado... um velho cão,
Longe da selva que antes dominou...
Durante toda a noite não parou
O queixume infeliz... e a Lua... então
Tirou das negras trevas a ilusão...
Mas... a dor do animal ninguém escutou?!
Surda de pena está a Humanidade!
Só eu ouvi latir o velho lobo...
Senti a dor do bicho e, em todo o globo,
Só eu, que sou ninguém, que sou saudade,
Vi nele, na voz perdida a alma vã,
Meu retrato de ser sem amanhã...
Gil Saraiva
IV
"VERGONHA"
No eco dos sentidos
Mais profundos
Procuro com fervor
Uma outra idade...
E lembro os velhos tempos
Com saudade...
E, outra vez,
Vivo-os, por segundos...
Mas se meus anos
Foram tão fecundos,
E já alguns eu tenho
Em minha idade,
Noventa devo ter eu
De ansiedade
Pois tenho o Ser e a Alma
Moribundos,
Perdidos entre sonhos,
Vagabundos...
Meu eco,
Do sofrer,
Viveu imune
Até dele alguém
Fazer denúncia...
Não mais poderá
Ficar impune...
E a vida irá mudar
Se houver renúncia...
Meu ego
Esqueceu como se sonha...
Ficou dentro de mim,
Por ter vergonha!...
Gil Saraiva
"OS AZARES DE UM HOMEM DE SORTE"
Sou um homem de sorte!
Perguntam-me porquê?
Coisa mais simples:
Tenho a sorte de ser feliz,
Alegre,
Um otimista, enfim...
Mas e a Vida corre bem?
Ah... a Vida...
Essa ingrata criatura,
Sem forma ou rosto,
Nem sempre corre
Quanto mais bem...
Se é pra subir,
Subir na Vida,
Quase gatinha
A pobre atrapalhada.
Mas a descer é mestre,
Dá cartas,
Tem os recordes todos
E as medalhas...
Parece andar a jato,
É campeã!
Nos momentos sem altos
E sem baixos
Marca passo,
Conta um por um,
Como se cada passo
Fosse ouro
Que há que guardar para sempre,
Qual tesouro!...
É prima dos Azares a minha Vida,
Com eles convive sem pudor,
Dão-se tão bem,
No dia-a-dia,
Que chego a pensar
Se não seria melhor
Que casassem por amor!...
Se casa, carro, mulher,
Perco de uma vez apenas,
Diz-me a Vida que é banal...
Um azar nunca vem só!...
E se um outro azar houver
É normal,
É natural:
Seja a falência da firma,
Seja o que Deus quiser...
Um azar nunca vem só!
Mas sou um homem de sorte!
Estou vivo,
Choro e coro
Com todas as minhas forças...
E nem a madrasta Morte
Me bate à porta, faz tempo...
Para rir
Basta um sorriso
De quem me quer
Como sou...
Ah! Sim...
Eu sou um homem de sorte...
Tudo o resto são más línguas;
Coisas
Que o vento levou...
E se a tal,
A minha Vida,
Comigo quiser viver,
A sorrir
Tem que aprender,
Que eu tenho mais que fazer
Que aturar os primos dela,
Esses Azares
Sem gosto,
Viciados no desgosto...
Sorriam, estou bem disposto,
Pois sou um homem de sorte,
Para quem sempre é Natal
Ou Páscoa ou Carnaval...
Sou um ser dos alegres
Que sorri até para o não!...
Os Azares de um homem de sorte
Valem pouco, nada são!...
Gil Saraiva
"QUE IMPORTA?"
Temos esta noite...
Pensa bem...
Que importa o amanhã
Se hoje existimos...?
Se podes escrever
As palavras
Que me invadem o ser
E me viciam...
Que importa o amanhã...?
Vício de ti...
É virtual?
Interneticamente inatingível?
Que importa o amanhã
Se a noite é nossa...?
Se é o futuro
Que te dá alento,
Porque não pode o presente
Ser esperança?
Ahhhhh!!!
Nasce comigo em cada tecla!...
Nos diálogos frenéticos
Das janelas privadas,
Fechadas a todos
Que não a nós...
Nasce comigo em cada letra
Teclada com a força
Do bater arrítmico
De nossos corações perdidos,
Para a eternidade,
De tanta paixão...
Ahhhhh!!!
Nasce comigo antes de amanhã,
Porque o agora existe!...
E é nosso, amor,
É todo nosso!!!
Que importa o amanhã...?
Diz-me!
Que importa...?
Gil Saraiva
"TOCA-ME"
Quando aquela mão
Se estende decidida e sensual,
Num caminho seguro,
Até tocar suave
Um membro adormecido,
Despertamos nós...
Desperta o príncipe
Com coaxares de sapo,
Porque a magia
Se fez vida
E gozo último...
Quantos de nós, homens,
Antropófagos do sentir,
Não atingimos o céu
Antes do tempo
E tudo por um toque apenas?
Ahhhhhh...
Isto é vida!
Nada se compara
Ao arrepio da derme
Perante um deslizar
De dedos ao acaso.
Nada é mais intenso
Do que sentirmos a mão,
A nossa mão,
Navegar serena,
Pela derme de outro alguém,
Procurando o calor ameno
De um Trópico de Câncer
Ou Capricórnio...
Pra mergulhar ardente
Num vulcão de amor
E nos fazer arder
Sem febre alguma
Que não aquela
A que chamamos de paixão...
Partir do que é geral
Para o mais específico,
Íntimo, privado e particular...
Sentir a preocupação das formas,
Das cores, do brilho,
Do estado hipnótico de um toque,
Em impressões táteis
De impensáveis sensações
De loucura frenética e absoluta...
Depois...
Procurar uma ordenação tátil
Dos elementos do percurso
E projetá-los em cenas
De luxúria conseguida e integral...
Por fim...
Gritar em êxtase:
Toca-me, de novo, meu amor!!!
A Mulher,
Mais do que ser humano,
É arte viva,
Sente
Como nenhum outro espécime
À face do planeta...
E faz sentir...
Chegamos ao infinito
Num só toque...
E de lá voltamos para podermos,
Também nós,
Tocar e atingir assim
O despertar de uma aurora
Que nasce pura de êxtase
E plena de prazer!...
A Mulher
Faz uivar bem lá no fundo
Aquele ser esquecido,
De ser gente,
De ter vida,
De ter voz...
E provoca do íntimo
A alma ansiosa de sentir,
Perdida de sentido,
De momento,
Já faz muito e muito tempo,
Para gritar, por fim,
Em pleno êxtase:
Toca-me, de novo, meu amor!!!
Gil Saraiva
"Haragano, O Etéreo, um Senhor da Bruma"
(A HISTÓRIA...)
Ao princípio
Senti-me como que um desaparecido...
Não em combate,
Como certos militares em terra estranha...
Não no triângulo das Bermudas,
Como reza a história de muitos navios
Perdidos na Bruma...
Não em pleno ar,
Como se fosse um avião
Engolido pela própria atmosfera
Algures entre nuvem e bruma...
Não! Nada disso! Desaparecido de mim...
Sem identidade... Sem existência...
Sem referências... Sem sentido de viver...
Sem imagens claras, perdido na bruma...
Imagine-se a montanha!
Grande! Monstruosamente grande!
Gigante mesmo
Elevando-se na planície!
Isso fui eu,
O eu Narciso antes da primeira queda,
Antes do começo das erosões...
Seguidas, repetidamente insistentes,
Continuadas no tempo e na vida...
Isso fui eu,
Antes dos abalos, dos sismos,
Dos terramotos sem fim
Num mundo feito de sobrevivência
Mais que de essência!
Isso fui eu, antes da bruma...
E a montanha foi perdendo forma,
Volume, dimensão...
Até se confundir na planície amorfa
Da multidão sem rosto,
Sem esperança,
Sem dignidade
E sem amor próprio...
Aparentemente,
Eu tinha desaparecido,
Sem que um vestígio de sobrevivência
Servisse de pista
Para uma busca por mim mesmo...
Imagine-se um desastre
Num qualquer ponto isolado do globo,
Onde um hipotético sortudo
Salvo da morte pelo acaso,
Irremediavelmente ferido,
Acabasse por ficar
Virtualmente irreconhecível
Perante a exposição ao tempo
E às depredações dos animais
E da própria natureza...
Isso era eu!
Perdido de mim e dos meus...
Desaparecido do mapa
Dos humanos com voz própria!
Ao princípio
Foi assim que me senti.
Depois, dei conta que vagueava
Sem destino ou rota certa...
Algures entre nenhures,
Um ser disforme,
Parco de alma e existir...
Durante momentos que pareceram anos,
Durante anos que não tiveram momentos,
Apenas procurei, não sei o quê...
Não sei porquê...
E não sei como...
Quando finalmente dei por mim,
Não passava de um vagabundo,
Perdido de si em busca do ser...
Era como se os locais,
Por onde a minha sombra
Me garantia a existência,
Fossem nuvens sem forma,
Estradas sem referências,
Caminhos sem lei...
Brumas sem paisagens...
Apenas limbos...
Apenas Éter...
Apenas Bruma...
Às vezes sentia
Que estava numa grande teia,
Cheia de predadores,
Plena de vítimas,
Ávida de sentidos e sentimentos...
Uma teia universal que me envolvia
Como uma rede escura e semieléctrica...
Descobri, aos poucos,
Que tinha sido absorvido pela internet
E que me tornara
Num Vagabundo Dos Limbos,
Em Haragano, O Etéreo,
No Senhor da Bruma,
Numa Lenda Urbana
De quem nunca ninguém ouviu falar,
Num Senhor dos Tempos
Sem tempo para si mesmo...
Um Sir, à inglesa, polido na forma,
Vazio no íntimo de si próprio,
Repleto de vontade e de reconstrução...
Um Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo,
Senhor da Bruma,
Em busca da identidade esquecida
Num passado sem memória...
Até que renasci,
Gritando aos cinco ventos
A minha alvorada...
Vento de ser,
Vento de existir,
Vento de viver,
Vento de sentir,
Vento de amar...
De novo era gente,
Uma criatura nova,
Não na idade que essa
Não deixa Cronos em cuidados,
Mas na vida.
Eu era...
Eu sou, esse Sir,
O Vagabundo Dos Limbos...
Haragano, O Etéreo...
Senhor da Bruma...
Pela rede universal transmitindo
A história de uma alma
Que aos poucos fui reconstruindo,
Sem vaidade, sem orgulho,
Sem a certeza sequer de ser ouvido...
Porém... com a esperança
De que ao falar globalmente
Para este universo imenso,
Possa um dia agir localmente
Na alma de um ser que como eu
Se sinta desaparecido a dada altura...
Assino, como me conhecem:
Sir, Vagabundo Dos Limbos,
Haragano, O Etéreo...
Senhor da Bruma...
Gil Saraiva
"CAÇADORA DE SONHOS"
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Armada de vida,
Carente de presas,
Eu... pela cidade
Procuro a saída
Encontro defesas
Na alma do mundo:
Ninguém se quer dar;
Ninguém sabe amar;
Ninguém quer, no fundo,
Saber encontrar
A paz, no profundo
Calor de um segundo...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Eu vejo no dia,
Na noite bravia,
No caminho, na rua,
Entre gente, mais gente,
Vestindo essa moda
(Qual festa tardia
Ao néon da Lua),
A gente que mente
E em bares se acomoda...
E ali, nessa esquina,
Eu vejo no dia,
Na noite bravia,
Se vendendo toda,
Uma pobre menina
Que diz a quem passa:
"- Mil paus... tô na moda..."
No meio da praça,
Se vendendo toda
Joana sem caça,
Carente de presas,
Faz contas à vida:
"- Nem dá prás despesas...
Que porra de vida!..."
E gente infeliz,
Com hora marcada,
Passa e lhe diz:
"- Dou cem e mais nada..."
Caçadora de sonhos...
E tão sem saudade...
Eu já vejo agora
O riso da erva
Nos pés dessa serva,
Que vende por hora
O corpo... estragado...
De tão ser usado.
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Buscando, perdida,
A velha igualdade
Do mundo, da vida...
Buscando ilusões,
Conceitos, ideias,
Credos e orações,
Entre cefaleias...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
É assim: no leve sorriso
Dessa erva daninha;
No cato que cresce
Formando uma espinha;
Na espinha que pica
Aquela andorinha
(Coitada, infeliz,
Que sangue já chora),
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
E choro de mágoa
O gozo sinistro
De certa gentinha,
Com cara de quisto
Pejado de tinha;
E a cara alegre
De um velho ministro
Que julga esconder
O que já foi visto...
Choro... choro e volto a chorar...
Mas... riem as luzes p’la cidade fora...
Riem de mim na noite vizinha;
Riem... riem como quem ri
De uma adivinha prá qual a solução
Não se avizinha...
Riem... riem enquanto meu ser
De novo chora,
Chora como ontem,
Como hoje e agora:
Chora as meninas
No meio da praça
Se vendendo todas
Ao primeiro que passa...
Caçadora de sonhos
E tão sem saudade...
Como posso caçar
Sonhos no mundo?
Como posso amar
Mais que um segundo?
Não tenho saudades
Da terra maldita,
Onde o direito
Não passa de fita...
Minha alma:
Caçadora de sonhos
É tão sem saudade...
Gil Saraiva