VI
“A VIGÍLIA”
O sonho parece não ter fim…
Criando pequenas praias graciosas
O mar banha os despontares de areia,
Com flores de espuma, qual jardim,
Regado a gotas de oceano, preciosas,
Pérolas de mar na maré cheia…
De forma suave, harmoniosa,
Chegam as águas fluidas à muralha,
E a meiga ondulação vai radiosa
Penteando as pedras sem batalha,
Numa paz cúmplice que enleia
As margens por onde serpenteia…
Na piscina do hotel a queda de água
Trauteia indolente a voz da vida,
Sem sinas, tristeza ou sequer mágoa,
Apenas porque a vida lhe é querida…
Ao fundo um colorido bar molhado,
Servido por morena no sorrir garrida,
Refresca, por dentro e por fora,
O mais acalorado convidado,
Para quem as cervejinhas, canapés
Ajudam a ficar mais relaxado,
Na plácida vigília dos chalés….
Subitamente, tu entras na piscina,
E a água reflete as tuas formas
Num misto de sereia e de menina,
Que rompe status quo, rompe normas,
Apenas transmitindo o sensual
Apelo ao sexo, pelo movimento,
De um nadar suave e natural.
Tocam alarmes no meu pensamento
Há muitos predadores
À solta, a esta hora,
Que, tal como nativos batedores,
Vão dar por ti e sem demora.
Qual harpia me ergo concentrado,
Para além de meu amor, tu és família,
De pé, monto o meu posto de soldado,
Anunciando que estou de vigília.
Tu dás conta do meu ar de vigilante,
Rindo, tiras da água o corpo sedutor,
Dizendo bem alto e provocante:
“- Anda, vem, vamos fazer amor.”
Gil Saraiva
* Parte I I - Portaló ou o Sortilégio do Paraíso
"CHORAI"
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Aqueles que chutam a bola
Apocalíptica dos sonhos sem prazer...
Aqueles a quem a vida disse, um dia,
Pra sofrerem as torturas da agulha;
A doce sensação do não sentir;
E o ventre seco e frio da própria
Morte...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Aqueles que veneram a miragem negra,
Heroína suprema dos homens
Sem rosto, sem nome
E sem força de vontade
Ou sem amor...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Porque deles é o reino da vida
Sem Futuro,
Porque neles tudo é estéril,
Seco e sem sentido;
Porque eles são o espelho mais triste
Do Inferno.
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Porque entre eles passeia a Negra Dama,
Plena de clientes, satisfeita...
Porque de Tchernobil já estão vacinados...
Porque oxigénio, Amazonas e ozono,
São coisas supérfluas, palavras soltas,
Num mundo que deixaram já faz tempo...
Porque a SIDA é apenas um atalho,
Não um mal, apenas e somente
O caminho mais curto para quem
Já não tem tempo...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Lagartas fechadas num casulo
Selado nas veias, ocas de sangue,
Plenas de vício e de tristeza...
Crisálidas, uns insetos humanos
Que nunca serão gente;
Vazios de esperança, carentes de voz...
Seres de asas queimadas
Que jamais voarão rumo à liberdade;
Que jamais sentirão o cheiro das flores,
O gosto, o gozo de voar, ser borboleta...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Chorai lágrimas de amigo, irmão, de primo
Ou filho até...
Chorai os que odeiam, agora, a luz
do Astro Rei...
Chorai os corpos vivos
A quem a mente abandonou...
Chorai aqueles que andam à procura
Da alma que não sabem encontrar...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Chorai também aqueles olhos parados...
Deus…!!!
Aqueles olhos parados de quem já foi criança,
De quem era tão engraçadinho
Nos primeiros sorrisos... lembram...?
E quando, um dia, ele te chamou "- Mamã..."
Ainda te recordas…?
E quando, a dado momento,
Deu os primeiros passos,
E tu, pai orgulhoso,
O abraçaste entre as essas mãos,
Amostras firmes de vigor,
Então tão carinhosas...
Não é fácil esquecer…!!!
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Que já tiveram mãe, avós, amigos,
A quem demos a mão,
Com quem brincamos à apanhada,
Escondidas, cabra-cega, monopólio,
Damas, xadrez, gamão, jogos de cartas,
De amor, carinho, afeto ou de amizade...
Chorai... Aqueles que sabiam quem tu eras,
A quem contavas, baixinho... a rir, talvez...
Segredos que o mundo inteiro ignorava.
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
E sejam brancos, negros, vermelhos,
Arraçados; chineses, esquimós, gregos,
Franceses, angolanos, alemães
Ou portugueses, não nos importa a nós...
Chorai...
Chorai comigo budistas,
Católicos, ateus ou protestantes;
Velhos, crianças, meninos e meninas,
Jovens na flor da idade, homens, mulheres,
E toda a gente que neste mundo exista...
Chorai...
Chorai comigo...
Uni hoje vossa dor à minha mágoa.
Chorai, chorai comigo, ó, por favor...
Que a culpa não é só de quem cultiva,
Trafica ou se vicia... Mas sim de todos nós
Que não fazemos nada para ceifar da Terra
A triste chaga... Ao menos... chorai...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Condenados por nós à Morte lenta...
Chorai...
Chorai comigo...
Chorai, chorai comigo...
Chorai...
Chorai comigo os filhos das Trevas...
Gil Saraiva